sábado, julho 30, 2005

O Dafnis e a Cloé


O Dafnis e a Cloé tinham algo em comum: tinham sido encontrados os dois por pastores quando eram pequenos. Como viviam no mesmo sítio, passavam o tempo todo juntos, brincando e descobrindo o mundo. Para Dafnis a resposta era sempre Cloé.
Desde muito cedo que sentiam um afecto muito forte um pelo outro. Um dia, com o despertar da adolescência, começaram a sentir um calor muito intenso sempre que estavam perto um do outro. Deitavam-se nus ao lado um do outro, sem saber o que fazer, abraçados ternamente.
-Vou morrer! - dizia Dafnis... A Cloé sentia o mesmo, sentia-se a afogar no seu desejo por Dafnis, um fogo intenso que lhe fazia impressão na barriga e lhe deixava a pele toda arrepiada. Dafnis sentia o calor entre as pernas, fazendo-lhe inchar o sexo e levando-o, por vezes, a perder o nexo.
E deixavam-se estar assim, abraçados no meio do campo, com as ovelhas a pastarem à sua volta, sentindo a palpitação voluptuosa da vida e não sabendo o que se passava. Não compreendendo, apenas aceitando...
A vertigem do desejo confundia-se com a proximidade da morte, como se fosse uma eminência de revelação.

quinta-feira, julho 28, 2005

O mar


Sempre quis ser um peixe. Um peixe que nadasse perto da superfície, que era para poder ver o sol, mas um peixe-peixe. Um peixe escorregadio e luzidio, rápido a nadar e esperto a desviar-se das redes que por aí andam... Mas, acima de tudo, perder-me no mar, senti-lo à minha volta, dentro de mim, a atravessar-me, a ser todo o meu universo. E não pensar em nada. Não pensar: isto é bom? Sentir, sentir o mar, o sabor do sal na minha língua de peixe que não conheceria outro sabor, o toque fluido da água nas minhas escamas que não conheceriam o toque da brisa seca... Conhecer as correntes e os outros peixes. Dançar por entre as algas. E morrer lá fora, em terra, com a chuva a cair sobre o meu corpo-peixe, para lhe sentir o sabor pelo menos uma vez na vida.

sexta-feira, julho 22, 2005

Flores


Os pequenos caprichos egoístas dos que mandam no mundo imiscuiram-se, lentamente, em tudo. Hoje em dia, os princípios que regulam a actividade económica são de tal forma que teriam sido considerados demoníacos noutros tempos.
Sapatos desportivos, roupas, computadores, tudo o que compramos participa num jogo que nos transcende e que faz muita gente infeliz. No entanto, há muitas coisas que não podemos deixar de comprar... e quem as faz sabe disso.
Muita gente, demasiada, se afastou demasiado da natureza e, assim, da humanidade.
Flores para lembrar aquilo que há de bom...

Roupa Suja


São as casas dos trabalhadores das fábricas de roupa da Indonésia. Mas não são fábricas de roupa qualquer... São as fábricas de roupa das marcas mais conhecidas: Gap, Basics, Ralph Lauren, etc.
A pergunta que temos todos de fazer não é: será que uso roupa feita por pessoas em condições desumanas. O mais trágico é que a pergunta correcta é: será que uso roupa de alguma marca que não seja feita por pessoas em condições desumanas?
As grandes marcas todas participam desta forma degradante de produção. Até o Decathlon que eu achava que estava completamente de fora dessas porcarias... Vejam a lista no site da Campanha de Roupa Limpa.

Nike - Just Do It


Um casal de trabalhadores de uma fábrica de material desportivo da Indonésia. A fotografia foi tirada na sua casa, quando esperavam o seu primeiro filho. O homem disse ao fotógrafo: "O meu salário dá para comermos, mas não podemos comprar nem um rádio nem mais nada. Como pai, sinto-me muito preocupado com o meu bebé. Poupamos dinheiro quando podemos. A coisa que mais me assusta é a nossa situação financeira depois do bebé nascer, porque os salários que a Nike para são demasiado baixos..."

Nike - Just Do It

quarta-feira, julho 20, 2005

Abnegação

O filme sobre o caos e o terror na Birmânia chamado Rangoon tem um momento em que o tempo parece suspenso...

É uma travessia a pé de um rio. As pessoas têm de atravessar porque estão a ser atacadas pelo exército. O rio é demasiado largo e a corrente muito forte. As pessoas mantêm-se juntas com os tiros e as bombas a cairem ao seu lado. Os mais fracos são arrastados pela água.

Há uma mulher que leva um bebé pequenino ao colo. Está demasiado fraca... E enquanto é arrastada pela corrente, o corpo todo submerso, a cabeça debaixo de água... O tempo pára. Ela ergue o bebé sobre as águas, em desespero, para que alguém o possa salvar. Se o abandonasse poder-se-ia ter agarrado a alguma coisa. Se o deixasse cair à água poderia respirar mais uma vez. Se o largasse morreria de outra maneira muito pior que o afogamento.

Ela morre a saber que o seu bebé viverá mais um pouco, foi salvo por uma mão amiga.

Esta história é tocante por parecer tão real. Esta história é todo um filme. As pessoas têm destas coisas que nos surpreendem, de facto. As pessoas têm coisas boas.

terça-feira, julho 19, 2005

Danae e Zeus


Havia um rei chamado Acrisius que tinha uma filha, Danae. Um dia o oráculo profetizou que Danae iria dar à luz um rapaz que haveria de matar o rei.
O rei, assustado, mandou trancá-la numa torre de bronze, sozinha.
Danae vivia muito solitária e ansiava por amor. Zeus, ao olhar para ela na sua solidão, enamorou-se e resolveu amá-la. Só que Danae estava bem protegida dentro da sua torre. Então, Zeus transformou-se e choveu ouro sobre Danae, fecundando-a.
O rei acabou, realmente, por ser morto pela criança assim gerada. Danae significa «aquela que foi queimada» e Zeus significa «luz do dia». A conclusão é que o amor queima e é tão inevitável como o destino.

segunda-feira, julho 18, 2005

Eco e Narciso


Havia uma ninfa chamada Eco que tinha uma voz maravilhosa e adorava falar. Assim ficou incumbida de conversar com Hera, a mulher de Zeus, enquanto este se deleitava com as outras ninfas. Mas Hera percebeu e condenou a Eco a apenas poder repetir o que os outros lhe dissessem. Eco ficou muito triste.
Havia um humano chamado Narciso que era tão formoso que fazia com que todas as mulheres se apaixonassem por ele, mas não amava ninguém. Eco, quando o viu, apaixonou-se perdidamente por ele.
Um dia, ganhou coragem e foi ter com ele, mostrando-lhe o seu amor por gestos e olhares. Narciso, que se aborrecia por tanta gente o amar, rejeitou o seu amor.
A Eco ficou com o coração despedaçado e deixou-se definhar, sem comer nem beber, até que dela só restou a voz, presa pelo feitiço de Hera à obrigação de repetir a voz dos outros.
Narciso desagradou aos deuses por não saber amar e foi castigado. Ao contemplar o seu reflexo na água, apaixonou-se por si próprio e nunca mais conseguiu sair dali. Acabou por se transformar numa flor que conhecemos como o narciso.

quinta-feira, julho 14, 2005

Lilith



Na Bíblia há duas passagens referentes à criação da mulher. A primeira diz que Deus criou o homem e a mulher à sua semelhança, a segunda fala da história da costela de Adão, usada para gerar a Eva. A conclusão da análise judaica foi que se tratava de duas mulheres primordiais: a Lilith e a Eva. Porquê duas?

A Eva é a mulher submissa que segue o Adão e lhe obedece como Deus manda.

Lilith é acusada de coisas hediondas. Diz-se dela que recusava prender o cabelo e gostava de se sentar no sexo de Adão, descontrolada. Foi expulsa do paraíso e banida para os infernos onde copula com demónios e gera legiões. É ela a tentadora.

É a mulher que assume a sua sexualidade, a mulher que sabe o que quer. Ela assusta o homem, como no mito da vagina dentada: faz o homem temer que a sua virilidade não seja suficiente e, por isso, tem de ser banida.

Nos tempos antigos, acreditava-se que a terra tinha duas luas. Uma que nunca se via e a outra, visível. A lua negra é a Lilith.

Em homenagem ao feminino houve quem dissesse pela boca da Lilith: «Porque eu sou a virgem e a mãe, a puta e a mártir.»

O feminino é tudo isto: a pureza infantil da menina, a loucura insensata da sexualidade da mulher, a doçura incomparável da mãe e a determinação férrea da visionária. Homenagem lhe seja prestada!

Lilith

quarta-feira, julho 13, 2005

Sheela-na-Gig


É a Sheela-das-Árvores, a mulher livre e sem vergonha. A mulher que não foi quebrada pelas limitações impostas pelos homens, que pode mostrar o seu sexo sem ter que ter medo. É a força do feminino...

Sheela-na-Gig

terça-feira, julho 05, 2005

Amor...

Dizem que a nossa visão do amor tem as suas origens no amor cavaleiresco da Idade Média. O amor cavaleiresco deriva da zona do sul de França que é uma zona de inspiração Cátara.
Os Cátaros, por sua vez, apoiavam-se na visão da Gnose ou Gnosticismo que defendia que o universo não tinha sido criado por Deus mas sim por um criador incapaz, o Demiurgo, que tinha criado o mundo e, assim, tirado o homem do seio divino. Deste modo, o mundo era mau, era o que afastava o homem de Deus e o único caminho para Deus era contrariar o mundo.
Os Gnósticos viam o mundo como se ele fosse a terra do Diabo. Entretinham-se em rituais bizarros de desprezo da natureza humana ou de excesso para a ridicularizar: tanto as orgias desenfreadas em que chegavam a simular a missa de uma forma, digamos, muito pouco católica; como o afastamento do mundo.
Isto veio a associar-se ao que diziam o São Paulo, primeiro, e o Santo Agostinho, mais tarde: que o amor físico entre o homem e a mulher deve ser regulado e apenas concretizado tendo em vista a procriação.
Assim, chegou-se ao ideal do amor puro e semi-utópico, de divinização do amado e, lado a lado como este ideal, da carne impura e ridícula, que só serve para desprezar e conspurca a pureza dos sentimentos humanos... Que pena que não sejamos como os árabes que são capazes de frases que a nós nos chocam por serem tão estranhas: «E é aí, entre as tuas pernas, Alá seja louvado, que se encontra o paraíso!».
Nós somos a carne. Nós somos o espírito. Nós amamo-nos. Nós fornicamos. Nós vivemos. Nós comemos. Tudo é o mesmo. Tudo é união: entre os amantes, entre o ser e o mundo. Comer é unir-se com o mundo. Fornicar é unir-se com o ser amado. Se as palavras nos soam rudes, não serão os nossos ouvidos que as tornam ásperas?
Que a verdade brilhe e veremos as coisas livres de preconceitos.

sexta-feira, julho 01, 2005

Transformação

Há qualquer coisa de violento, há uma intensidade reprimida nas expressões dos que vão placidamente, de manhã, trabalhar... É uma coisa animal, uma coisa coisa que se derrama dos seus olhos e lhes crispa os músculos e os faz ter comportamentos incompreensíveis e turbulentos e caóticos e belos. Belos por serem como uma afirmação de que estamos aqui, agora, de que queremos mais do que isto, de que somos outros que não estes...
E eu, no meu universo cinzento, observo e sou observado, vejo a dor e sinto a dor, respiro a alegria visceral da revolta alheia, exalo, eu próprio, esse mesmo grito e sou uno com todos eles.
Como um só corpo caminhamos na mesma direcção, em nome dos mesmos princípios, num consenso a que chamamos o nosso mundo. Mas eu quero mais. Também há consenso na revolta. Porque não podemos caminhar juntos noutra direcção?
É preciso força para subjugar o outro, mas é preciso mais força para se submeter ao jugo, para resistir à agressão, para não ser destruído. E é uma força inteiramente diferente, mais essencial, mais desesperada... Os fracos são perigosos, são capazes de mobilizar mais força do que aquela usada para os enfraquecer. Os fracos são mais fortes...
Caminho sem hesitar, sonhando com a transformação.