terça-feira, agosto 30, 2005

À procura



À procura, à procura do sentido, de sentidos. À procura de ideias, construções que tenham algum fim, que cumpram algum objectivo.
Porquê fazer, ir, rir ou chorar, viver? Porquê?

A procura é um ir incessante, um não-estar aqui, uma fuga. Um zapping da vida, pensando que talvez haja algo de melhor atrás daquela esquina, no próximo ano, na próxima idade, na próxima vida, talvez haja algum canal melhor (pode sempre existir um canal melhor do que aquele que temos diante de nós). A procura é evitar o envolvimento, a relação. Estar à procura é tentar escapar.
Sabemos escapar muito bem. Conseguimos safar-nos de envolvimentos tão inevitáveis que quase parece um passe de mágica! Mas o tempo não pára e come os seus próprios filhos: devora-nos esgotando a nossa força, que nos permite agora escapar tão bem. A única âncora contra o tempo é as relações, o envolvimento, as raízes que o coração implanta no tecido do real.
A procura, a busca, é necessária, significa evolução! Mas não é uma procura de algo de diferente, de algo de melhor. É uma procura de sentido, sim, mas do sentido daquilo que temos diante de nós, não do sentido do que não temos e que, por isso mesmo, nos cativa tanto. O fascínio pelo exótico (sabes do que estou a falar, não sabes?) é querer fugir, fugir ao banal, ao nosso banal, que é o nosso mundo, que é o que nós somos. Só atravessando o tédio, caindo na profunda banalidade irrepetível daquilo que nos rodeia, mergulhando naquilo de que mais queremos fugir, só assim poderemos encontrar aquilo que procuramos no longe e no exótico.

Comer muito chocolate parece ser sinónimo de obter muito prazer, mas quem já sentiu um único pedaço a derreter na língua, demorando o gozo de o engolir, reprimindo a vontade de o mastigar, ficando ali, a saborear o absoluto, sabe que a inquietação do exótico, do apelativo, nos dificulta o saborear das suas infinitas nuances... Sabe que, às vezes, é preciso evitar o chocolate, como forma de reencontrar o seu verdadeiro sabor.
A atenção ao momento, ao que nos acontece agora e que vamos perder já de seguida, que vai acabar, é o que nos permite realmente estar vivos! Só agora podemos decidir a nossa vida; não há futuro, o momento presente é quando podemos decidir, é quando vivemos, tudo o resto é ilusão: o passado representa as condições que limitam o momento presente (a bagagem) e o futuro as expectativas que o limitam (a direcção), mas só ele existe, só ele é autêntico.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Enheduanna, sacerdotisa da lua

A primeira mulher que deixou alguma coisa escrita para lermos hoje,
Enheduanna, nasceu perto de 2300 anos antes de Cristo na Suméria, filha do imperador Sargão. Era sacerdotisa da deusa da lua Nanna, em Ur.

Escreveu o hino "A subida de Inanna" onde celebrava a sua relação com Inanna, deusa do amor filha de Nanna, a imensidão que sentia perante o absoluto, Enheduanna, perdida no tempo...



Majestosa rainha do eu assombrado, envolta em medo,
Que cavalga o grande eu, Inanna, Vós que aperfeiçoastes a arma a-ankara,
Que estais coberta com o seu sangue,
Que rondais tempestuosamente as grandes batalhas,
Que pisais os escudos,
Que provocais a chuva-enchente,
Grande rainha Inanna experiente em planear o ataque, Destruidora de kur,
Que disparastes do Vosso braço a flecha para longe,
Que firmastes o Vosso braço sobre as montanhas,
Como um leão Vós rugistes no céu e na terra, despedaçastes a carne das pessoas,
Como um grande touro selvagem anseais a batalha contra as terras inimigas,
Como um leão assombroso aniquilastes com o Vosso veneno os hostis e desobedientes.

Minha rainha, quando Vos tornais imensa como o céu, Donzela Inanna,
Quando Vos tornais tão vasta quanto a terra,
Quando Vos ergueis como o Rei Utu, abrindo bem os braços,
Quando estais no céu, envolta em assombroso medo,
Quando na terra estais envolta em luz brilhante e fixa,
Quando viajando sobre as montanhas avançais como uma rede azul de lápis lazuli,
Quando banhais as terras frutuosas, as terras puras,
Quando gerais as terras brilhantes, as terras puras,
Quando Vos sentais como um verdadeiro amo, como um bom amo,
Quando nas suas batalhas Vós ergueis bem alto as suas cabeças como uma arma devastadora,
Então as pessoas de cabelo negro rompem em cânticos,
Todas as terras murmuram docemente o seu cântico ilulamma,
Rainha das batalhas, Grande Filha da Lua, Donzela Inanna, quero-Vos louvar como Vos é devido.


Inanna

segunda-feira, agosto 22, 2005

Lua vermelha



Noite pesada. Cansaço. Uma presença qualquer que me chama lá fora. Uma palpitação no ar. Um chamamento...
Vejo uma grande lua vermelha que se ergue, como um prenúncio de fatalidade.
Será hoje? Será hoje a guerra? O fim? Será agora a transformação? Vem aí?? Devo-me preparar? E o futuro é desconhecido? E vamos morrer todos?
O sopro tranquilo da brisa nocturna vem-me acariciar o rosto e diz-me para sossegar. Tudo ainda é possível. Anda. Vá. Respira fundo. Mais uma vez. Tudo ainda está por cumprir.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Luz



A proximidade do prazer é assemelhada à morte da mesma maneira que a proximidade da morte se aproxima do prazer. Parece estranho? Será?

O prazer é um receber em crescendo. É um mais, mais, mais! E depois, uma vertigem de esvaziamento. O momento em que se acabou de ler um livro, de comer um chocolate, de beijar alguém, é uma delícia, pois o sabor ainda paira em nós. De seguida, há um lento retornar ao mundo, uma quebra no maravilhamento, uma pequena morte.

A morte é o fim da possibilidade de usufruir de tudo aquilo que conhecemos. As pessoas que tiveram experiências de quase-morte voltam todas com as mesmas histórias: luz ao fim do túnel, sensação de conforto e familiaridade, alguns até excitação sexual. Faz sentido que o corpo, sentindo a iminência do seu fim, resolva gastar todos os seus cartuchos e produzir a melhor sensação possível, uma espécie de one for the road em versão de neurotransmissores. Por isso se conta dos enforcados que morrem com erecção.

Isto não é nada de novo. Eros e Thanatos. Prazer e Dor. Amor e Morte. Duas divindades gregas que andam sempre de mão dada. Há práticas ou distúrbios em que esta ligação se torna visível: o sadismo e o masoquismo. Prazer na Dor. Dor no Prazer.

Também há momentos mais elevados em que isto se vê... Como estar apaixonado. Estar apaixonado é querer morrer. É querer que tudo o que foi seja modificado em função do amado. É querer ser melhor, ser como o amado goste mais. É querer morrer. E renascer. É sofrer uma alteração em absoluto.

Alteração no sentido em que o que é deixa de ser e algo de inteiramente outro toma o seu lugar. Sai o menino, entra o homem. Sai o inocente, entra o culpado. Alterações.

A morte é a luz. A luz no sentido de que apenas quando a temos em consideração conseguimos atribuir valor a coisas objectivas. Apenas o reconhecimento de que um dia é possível que se torne impossível tudo o que conhecemos, que tudo acabe (obrigado Heidegger!) nos pode conduzir a uma existência real. O Heidegger chamava-lhe existência autêntica. Tudo o resto é ilusão. Construir um império... Para quê? Para quem? Connosco não levamos nada. Talvez nada mesmo.

Só quando sentimos o fio da navalha a correr sobre os lábios, o sabor confuso ao sangue que ainda não corre, só aí, à beira do precipício conseguimos ver o que mais importa.

Não é o mesmo para todos. Cada um tem a sua fórmula. Quando o meu pai morreu eu ia com ele no carro para o hospital. Ele estava ao meu lado e eu ia falando com ele. Nunca houve um momento em que as coisas me parecessem mais claras. Dedicamos tanto tempo ao que não é essencial e tão pouco, tão pouco mesmo, àquilo pelo qual morreríamos... Mais tarde, no leito de morte, diremos, se eu tivesse feito, se eu tivesse, ao menos, tido a coragem de viver, de olhar para aquilo que estava mesmo ao meu lado... Quando falo em verdade é nisto que falo.

Pétalas



As flores são os órgãos genitais das plantas. Dito isto, as pregas das pétalas sobre os estames e os estiletes têm o mesmo objectivo que as pregas de pele sobre os sexos humanos: esconder e proteger o que se encontra lá dentro... Ocultar um segredo.
Quem olhar para uma flor de pétalas garridas, expondo a sua intimidade sem pudor ao sol do meio-dia, não lhe leve a mal! Que com um arco-íris de pétalas perfumadas no sexo, também nós andaríamos assim: exibindo as nossas intimidades.

terça-feira, agosto 02, 2005

Terra


Quando era miúdo achava que se ficasse tempo suficiente dentro de água o meu corpo se desfazeria e eu ficaria feito em gotas de água... Sempre me achei água.
Porém, quando a terra fica molhada de chuvas mansas, quando tudo se faz húmus, quando passa nas minhas mãos o toque rude da terra fresca e húmida, e o cheiro intenso e familiar cobre tudo, sinto-me vegetal... Nessa altura, sinto-me árvore e só quero meter as minhas raízes pela terra adentro, à procura de mais água. Ficar quieto, deixar-me estar na terra a sentir a chuva que cai...
Quando alguém morria no caminho as pessoas levavam-no para os cemitérios, por piedade... Quem me dera a mim morrer ao ar livre, a sentir a terra sob o meu corpo e a chuva a cair sobre mim! Quem me dera aí ficar e aí ser coberto de terra, terra sobre o meu corpo nu, terra na minha boca... terra!
Daí me ergueria feito árvore, uma árvore grande para que pudesse sentir tudo, um grande carvalho ou uma faia, um castanheiro de aroma resinoso, um pinheiro...