Não passávamos de ratos, ratos que tiveram sorte. De súbito, surgiu a oportunidade e nós, criaturas esfomeadas, abraçámo-la.
Tínhamos a sorte de ter uma coluna vertebral definida, artéria principal por onde viajavam os nossos desejos mais íntimos, o nosso âmago liquefeito, comunicando directamente com as nossas emoções. Tínhamos a sorte de ter mães que, enquanto nos davam o seu peito, nos davam algo mais do que o leite: davam-nos o conhecimento antiquíssimo, a mensagem divina de todos os tempos.
E veio o tempo e a morte e a fadiga. E só os melhores resistiram. E eram lindos. Assumiram formas diferentes para se distinguirem entre si, para não terem de lutar uns com os outros. Isto foi no princípio, pois logo surgiu a segunda geração que percebeu que era fácil comer os vizinhos, porque dava menos trabalho do que procurar na terra o alimento sagrado. Nessa altura tínhamos nomes como: Leão e Golfinho, Pantera e Macaco, Cão e Rato.
Então começámos todos a desenvolver armas para defesa e para ataque. E criámos um ritmo fixo em que uns comiam os outros que comiam os outros. E houve quem conseguisse comer todos, mas não era sempre o mesmo. A vida tornou-se numa luta constante.
Se ainda aqui estamos, isso significa que somos vencedores. Que matámos mais do que morremos. Que comemos mais do que fomos comidos. Que a vida se alimenta da vida para afastar a morte.