terça-feira, dezembro 19, 2006

Delírio outonal


Ouvimos aquilo que já estávamos a pensar. Dizemos o que tínhamos planeado dizer antes de ouvir o que nos dizem. A comunicação é uma coisa rara. Implica que se ouça e ouvir é tão difícil...

Lembro-me sempre da primeira vez que percebi que as pessoas se escondem por detrás das palavras. Então com a religião é demais! Como os textos religiosos são sempre ambíguos, são perfeitos para serem usados como justificação para qualquer fim.

As palavras de Cristo que aparecem na Bíblia são muito simples e sem artifício, mesmo as parábolas são claras, e há 2000 anos que são usadas para dizer tudo menos aquilo que dizem: estamos todos no mesmo barco, é preciso haver amor.

As palavras de Buda sofrem um destino semelhante, basta pensar em quantos budistas não vêem Buda como o seu «Deus»! Buda dizia que todos nós somos potenciais budas. Recusava a ilusão e abraçava a verdadeira natureza das coisas, buscando o despertar da mente, que nos dizem ter alcançado.

Não interessa quais são as palavras, posso sempre usá-las para dizer outra coisa.

Quando a vela explode uma faísca no interior do cilindro e o fluido violento se aproxima dela, então, meu amor, tu sopras o teu beijo suave e o espasmo do pistão faz-se movimento, e o corpo pesado é lançado pelo espaço, e tudo volta ao princípio.

Na decomposição do conteúdo dos sacos pretos, no coração da lixeira, o voo das gaivotas faz-se um só grito. O sol encoberto de fumo e fedor, os sacos que se derramam pelo chão de lixo e exalam as suas entranhas fétidos, tudo conspira para a harmonia do todo.

E os camiões chegam sem cessar, trazendo a matéria-prima do cosmos no seu interior.

E o teu ventre puro, mãe, desfaz amorosamente todo aquele horror e fá-lo cada vez mais pequeno, até que tudo se liberte em vida luminosa.

E quando o meu cadáver ainda fresco cai pesadamente sobre o lixo, sinto o teu abraço quente que me desfaz em pequenos nadas, como se me pousasses a mão sobre a testa febril.

E sou amorosamente fundido com o lixo e com a terra, e regresso a casa.

terça-feira, novembro 21, 2006

Neptuno



As nuvens sobre o mar eterno, a distância ao nosso alcance ou o céu na palma da tua mão, como uma bola de cristal. Sinto a maresia através do vácuo, a espuma fria que se solta das vagas. Ouço o refluxo da onda e os seixos a rolar como um tremor de terra. E vejo-te, meu amor, através do espaço e do tempo.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Dia dos Mortos

Ontem foi o dia dos mortos, dia de finados, fiéis defuntos, chamem-lhe o que quiserem. Depende mesmo daquilo que se pretende realçar. Um morto é um não-alguém, alguém que foi e já não é. Um finado é alguém que chegou ao fim, há aqui uma dificuldade em aceitar a cessação do ser. Um defunto (de de-functu) é alguém que deixou de desempenhar a sua função, aqui a perspectiva é fria e racional, objectiva mesmo.
Eu gosto mais de dizer dia dos mortos, tudo o resto me soa a artifício para não o dizer deste modo.

Foi nesse dia funesto que nasceu Teixeira de Pascoaes, envolto na sombra do Marão, banhado pela água fria do Tâmega, perdido em contemplação na ponte de S. Gonçalo...

O melhor é deixá-lo falar...

«Poeta

Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.

Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou-
Em num, o antigo tempo é nova idade.

Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.

Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.»

Teixeira de Pascoaes

terça-feira, outubro 24, 2006

O Inevitável?



O cérebro manifesta o peso da idade em cada neurónio (a rosa) dificultando-lhe as ligações, que incham (axónios, a escuro), embora a informação continue a chegar (dendrites, a azul).

segunda-feira, setembro 25, 2006

Inanna



A noite e o amor nas areias da antiga Suméria, o desafio da morte pela fugacidade de um único momento de união, a beleza de todas as coisas humanas e divinas...

terça-feira, setembro 19, 2006

Anatomia do desejo


Como é possível que tanta magia se esconda no interior da estranha arquitectura do Hipotálamo?

A Passing Glimpse



A Passing Glimpse

I often see flowers from a passing car
That are gone before I can tell what they are.

I want to get out of the train and go back
To see what they were beside the track.

I name all the flowers I am sure they weren't;
Not fireweed loving where woods have burnt--

Not bluebells gracing a tunnel mouth--
Not lupine living on sand and drouth.

Was something brushed across my mind
That no one on earth will ever find?

Heaven gives it glimpses only to those
Not in position to look too close.

Robert Lee Frost

quinta-feira, agosto 31, 2006

Haiku do ateísmo

cobrimo-nos de cores vivas
para ver o pôr-do-sol
enquanto uma folha cai

quarta-feira, agosto 23, 2006

Sobrevivência



Não passávamos de ratos, ratos que tiveram sorte. De súbito, surgiu a oportunidade e nós, criaturas esfomeadas, abraçámo-la.

Tínhamos a sorte de ter uma coluna vertebral definida, artéria principal por onde viajavam os nossos desejos mais íntimos, o nosso âmago liquefeito, comunicando directamente com as nossas emoções. Tínhamos a sorte de ter mães que, enquanto nos davam o seu peito, nos davam algo mais do que o leite: davam-nos o conhecimento antiquíssimo, a mensagem divina de todos os tempos.

E veio o tempo e a morte e a fadiga. E só os melhores resistiram. E eram lindos. Assumiram formas diferentes para se distinguirem entre si, para não terem de lutar uns com os outros. Isto foi no princípio, pois logo surgiu a segunda geração que percebeu que era fácil comer os vizinhos, porque dava menos trabalho do que procurar na terra o alimento sagrado. Nessa altura tínhamos nomes como: Leão e Golfinho, Pantera e Macaco, Cão e Rato.

Então começámos todos a desenvolver armas para defesa e para ataque. E criámos um ritmo fixo em que uns comiam os outros que comiam os outros. E houve quem conseguisse comer todos, mas não era sempre o mesmo. A vida tornou-se numa luta constante.

Se ainda aqui estamos, isso significa que somos vencedores. Que matámos mais do que morremos. Que comemos mais do que fomos comidos. Que a vida se alimenta da vida para afastar a morte.

quarta-feira, julho 12, 2006

Uma grande onda



O Mar é o todo. Vamos navegando nas nossas frágeis cascas de noz, tentando fugir à próxima grande onda, evitando o desfecho que pensamos garantido.

Só que fomos feitos para isso: para ir persistindo, para sobreviver a todo o custo, lutar.

E quando se ergue uma grande onda, tão grande que obscurece os céus, e se prepara para nos engolir a todos de uma só vez, quando vemos por instantes a fragilidade da nossa ousadia de existir, quando acreditamos realmente que tudo vai acabar ali, é então que entrevemos ao longe, na linha do horizonte, a ilha perdida que procurávamos e sentimos o cheiro fresco das flores que crescem no sopé da montanha.

quinta-feira, julho 06, 2006

Não

Não consigo entender.
Não consigo entender a violência do que sentes.

Não o vejo, não vejo nada aí. Para onde me levas?
Não entendo.

Não sei se falo contigo ou se estou sozinho.
Não sei quem és.

Não sei se não vou voltar já para trás.

Não dizes nada?
Não vais ficar só assim, a olhar para mim, pois não?
Não me queres dizer ao menos se és quem eu penso que és?

Não andes tão depressa...
Não quero ficar aqui sozinho.
Não, aqui não.

Não sei há quanto tempo estamos nisto...
Não sei se houve alguma vez outra coisa,
não estivemos sempre aqui perdidos?

Não me dás a mão?
Não consigo ver nada.

Não te consigo ver.
Não te foste embora, pois não?

Não sinto o corpo.

Não sinto nada.

Não.

quarta-feira, junho 21, 2006

sexta-feira, maio 26, 2006

O silêncio da escuridão



O silêncio da escuridão. Lentamente começam a desfazer-se os contornos das formas que te rodeavam. Esqueces-te de onde estás. Começas a estranhar tudo.

A escuridão é uma presença específica. É um olhar para dentro. Abres os olhos no escuro e começas a ver aquilo que trazes por dentro, escondido. O que te esforças por nunca ver passeia-se livremente à frente dos teus olhos. E é enorme. Terrível.

É mil vezes pior do que qualquer realidade, porque agrega em si todas as redes de sentido tenebroso que existem no teu interior. Porque é tudo ao mesmo tempo! E não oferece nenhuma esperança, nenhuma redenção. Estás sozinho contigo próprio.

Só resta gritar ou reunir toda a coragem que tens e esperar que seja suficiente para olhar de frente para esses fantasmas do espírito. E então, tal como nos sonhos, imediatamente se desfazem todos os delírios, desaparecem as assombrações, a razão regressa a casa.

Há quem se tenha perdido nesse silêncio obscuro e nunca tenha conseguido regressar. Há quem vagueie pelos corredores escuros da mente aos gritos, procurando a saída enquanto foge. Só que não há saída que não passe pelos guardiães das trevas, que são os próprios medos.

É preciso muita coragem para olhar para trás, para o indizível.

quarta-feira, maio 17, 2006

O tempo não espera por ti

O tempo não espera por ti. (gritado)

Como se houvesse mesmo a tal invasão dos ladrões de tempo. Como se não pudéssemos baixar a guarda por um único instante. Como se houvesse algo há espera da nossa mais pequena distracção para nos roubar de uma só vez minutos seguidos, horas inteiras!

Como se a uma distracção matinal se sucedesse o momento em que te estás a deitar e pensasses: o que é que aconteceu hoje? Só me lembro de estar a sair de casa...

Como se a um ano se seguisse a década seguinte. Como se te visses ao espelho, envelhecido, e perguntasses: quem é este velho? O que é que aconteceu? Que merda é esta?

Como se aos sonhos grandiosos da adolescência se seguisse o leito da velhice e a angústia: não fiz nada, não vivi...

Como se hoje não fosse hoje e sim, já, o fim da linha.

A vida é hoje. É agora. O tempo não espera por ti. Levanta-te e sai do teu posto de trabalho, do teu apartamento, da tua prisão. Levanta-te e sai para a rua. Vive!

(SAIAM DOS VOSSOS CON.-AP.TOS!)

Só se pode parar para descansar e nunca por muito tempo. A letargia é por onde eles te apanham, os ladrões do tempo.

Não digas: agora não tenho tempo. Vai ser assim toda a tua vida.

Não digas: estou cansado. Vai ser sempre assim.

Lembra-te que vais morrer.

É agora ou nunca.

Tu não tens poder sobre o futuro, esquece os teus projectos. É no presente que vives e só aí podes escolher. Tudo o resto é ilusão.

Se não fores agora, não serás.

É agora ou nunca.

Vive.

O tempo não espera por ti!

quarta-feira, maio 10, 2006

A viagem

Se pintássemos um pontinho no mapa em todos os sítios onde já esteve alguém que conheço, ficaria todo sarapintado.

Começa logo pelos meus avós que deram a volta ao mundo umas três vezes e estiveram em quase todas as capitais de relevo da altura. Ele tinha uma agência de viagens e ela era guia-intérprete: dava para passearem juntos.

Depois durante muito tempo ninguém saiu de Portugal. Só uma vez a minha tia para os Estados Unidos e outra para França.

Então foi a minha vez de começar: Espanha, França, Suiça, tudo de uma só vez (era uma excursão!). Inter-rail até à Turquia. Depois Inglaterra. Muitas vezes. Estados Unidos e Bélgica (em trabalho). Espanha e mais Espanha (Viva la España!). França e Itália (Itália!!!).

Entretanto ouvia relatos que iam desde a Tailândia à Bolívia, do Japão ao Brasil, não esquecendo a Guiné-Bissau e o Senegal, a Noruega e a Bulgária, a Islândia e o Canadá.

Agora, neste preciso momento, conheço gente em Macau, na Venezuela, a ir para a Guatemala (Boa viagem!!!), no Brasil, em Inglaterra (Com dois bebés na barriga!), na Catalunha, em Sevilha e em Madrid (Que noite!), em França, em Florença e em Veneza, no Sudão e na Nova Zelândia, em Timor e nos Açores. Espero não me estar a esquecer de ninguém.

E as histórias são todas lindas e coloridas. Só quando paramos num sítio é que entramos em contacto com o que há de feio no mundo. Ou então quando há guerra. Visto de visita, o mundo é lindo e a natureza rica e fascinante. Há sempre sítios cheios de sol e de árvores, lagos escondidos e de águas límpidas, gente de sorrisos abertos e corações sinceros.

Grande, grande é a viagem.

quarta-feira, maio 03, 2006

Esquerda ou Direita?

No cérebro, à esquerda mora o mundo do particular, dos que dão atenção aos detalhes, dos que desmontam as situações e as analisam, dos que bebem todos os pedaços do néctar da vida, dos que se perdem a saborear uma coisa de cada vez, a diversidade e a riqueza do mundo.

À direita do cérebro, ou seja, da mente, entramos no universal, na procura de padrões e grandes esquemas universais, na busca da integração de tudo sob a luz de uma visão todo-abrangente, na consideração dos vários aspectos de uma mesma coisa, de quem mergulha em situações e, mais do que ver a multiplicidade da vida, contempla a união de tudo.

Na cara é o mesmo. Cada lado da cara reflecte a intensidade com que vivemos as suas particularidades.

Há quem não veja os detalhes, quem nem veja pessoas, casas, animais, carros, coisas. De quem se sinta no mundo e não considere as suas infinitas partes senão como contribuindo para o desenho geral. Da busca obsessiva de padrões. Da tentativa de integração de tudo. Eu sou assim. Quando estou desconfortável, é sempre o lado esquerdo da cara a manifestar-se, o lado menos desenvolvido, o particular, as sensações distintas e a análise esmiuçante

Há quem viva demasiado perto do que vê, pessoas, casas, animais, carros, coisas. De quem viva apenas aquilo que tem ao seu alcance e não conceba uma totalidade, uma união global. De quem se perca a dissecar as coisas uma-a-uma, procurando alguma inconsistência interna, alguma falta de coesão. De quem goste de montar e desmontar coisas, emoções e situações. Quando estão desconfortáveis sentem o lado direito da cara a manifestar-se, talvez num esgar ou sorriso à direita desconfortável, o seu lado mais fraco, a integração de todas as partes, a visão do que não é óbvio.

No entanto, o corpo, por defeito de montagem ou desejo da providência, inverte os valores. Assim, o lado do corpo mais desenvolvido para quem tem a cara e a mente à direita é o esquerdo e vice-versa. No meu caso é visível: vivo à direita, sou canhoto e quando fico desconfortável ou atrapalhado é a face esquerda que se manifesta (sorriso à esquerda ou a mão a mexer na cara).

Se prestarmos atenção, no desconforto dos que vivem a direita, é a mão direita e a face esquerda que se manifestam, por serem regulados pelo lado esquerdo, lado fraco, ponto de ruptura. Os que vivem à esquerda fragilizam-se pela face direita e pela mão esquerda.

Esquerda ou direita?

sexta-feira, abril 28, 2006

Dentro ou Fora?

Onde está a sua capacidade de frémito? Dentro ou fora?

Existe um sistema bem escondido no coração do cérebro e que se chama de sistema de activação reticular. É aqui que se decide qual o nível médio de actividade cerebral: alto ou baixo.

Aqui se separam as estirpes.

Quem tem um nível alto de actividade cerebral procura evitar mais estímulos fortes, para não se sentir esmagado pelo excesso de estímulos, são as pessoas sensíveis. Viram-se para actividades que lhes permitam lidar com o imenso volume de estímulos que lhes vêm de dentro, evitam as confusões e grandes multidões. Viram-se para dentro: procuram entender o mundo com base em aspectos interiores - são introvertidos.

Os que têm um nível baixo de actividade cerebral procuram estímulos fortes, festas, confusão e alegria, barulho! Viram-se para actividades que lhes permitam obter estímulos, para não se sentirem vazios, para preencherem o seu interior e se valorizarem. Viram-se para fora: procuram dar sentido ao mundo com base no exterior -são extrovertidos.

Onde está a sua capacidade de frémito? Por dentro ou por fora?

A minha está por dentro. Mas isso não é nada que umas cervejinhas não resolvam quando a ocasião surge...

quarta-feira, abril 26, 2006

Insistência

Voltar atrás, inúmeras vezes, e fazer tudo de uma forma um bocadinho diferente e voltar atrás de novo, até que tudo seja aquilo que é.

Às vezes penso que preciso de viajar no tempo, outras sinto que viajo no tempo, que estou preso num ciclo fixo que se repete indefinidamente, que tudo é sempre o mesmo que é preciso procurar uma saída, que há algo que me está a escapar, algo de essencial para que o próximo ciclo se me possa apresentar. As respostas parecem estar em todos os tempos, menos agora.

Repito os mesmos erros, conscientemente, faço aquilo que já sei que não devia fazer, quase de propósito, como se não interessasse. Onde está a atenção? Já deixei passar mais uma saída, preso numa estrada que vai para onde não quero ir. E as saídas? Onde levarão?

Os ciclos são desgastantes e, quanto mais se repetem menos força tens para te libertares deles. Procuras agarrar algum ponto fixo, alguma referência. Começas a entontecer. E então olhas para baixo.

Lá em baixo tudo parece tranquilo. Lá em baixo, onde se desiste de tudo e se vive o caminho mais fácil, tudo parece em paz. Mas não é verdade. É uma ilusão, uma vertigem: lá em baixo dói.

Lá em baixo as pessoas gritam nas ruas a angústia que lhes atormenta os dias e choram nas esquinas a solidão do seu interior. Lá em baixo é o inferno da queda, de cores garridas e sentimentos violentos, com muito barulho e que acaba num instante, sem tréguas nem redenção.

Olhar à volta, procurar uma vez mais: o que é que é preciso para conseguir sair daqui?

«Como são infelizes! Agitam-se para a frente e para trás sem perceberem que são eles próprios a causa de todos os seus males.» Pitágoras

segunda-feira, abril 17, 2006

Night of the Iguana

«How calmly does the olive branch
Observe the sky begin to blanch
Without a cry, without a prayer
With no betrayal of despair

Some time while light obscures the tree
The zenith of its life will be
Gone past forever
And from thence
A second history will commence

A chronicle no longer gold
A bargaining with mist and mold
And finally the broken stem
The plummeting to earth, and then

And intercourse not well designed
For beings of a golden kind
Whose native green must arch above
The earth's obscene corrupting love

And still the ripe fruit and the branch
Observe the sky begin to blanch
Without a cry, without a prayer
With no betrayal of despair

Oh courage! Could you not as well
Select a second place to dwell
Not only in that golden tree
But in the frightened heart of me»
Tenessee Williams

quinta-feira, abril 13, 2006

O calor da mulher

As águas borbulhantes cintilavam com a luz de um dia de Primavera, deixavam-me perdido em serena contemplação, fluíam vagarosamente - meu rio prateado! - ao longo de margens floridas e insectos esvoaçantes, libélulas e borboletas, cores intensas que me faziam suspirar. Havia em tudo aquilo, em todas as cores e os cheiros que enchiam o ar, uma pureza que era intrínseca ao universo, que me tocava e me transformava por meio daquela paisagem luminosa, embora eu não me apercebesse disso, de tal modo me deixava leve o espírito e solta a mente.

Lá em baixo, à distância de um salto que se fazia demorar, a piscina natural de água doce e espessa, deliciosamente fresca e purificante, aguardava o mergulho. A pele estava quente do sol da tarde e ficava arrepiada só de antecipar o toque gélido da água, as mãos familiares de uma amante, o beijo fresco da vida. O ar perfumado fez-se sentir em todo o seu esplendor de pétalas e de rio, de tarde quente e de Primavera, de campo, de alegria.

O equilíbrio era precário sobre a rocha molhada, de pés descalços e tacteantes em busca de apoio para empurrarem o corpo pelo ar. Os braços nus dançavam em busca de estabilidade. Com um movimento seco e simultâneo, o corpo em prancha atravessou o espaço e foi recebido no meio aquático.

Houve uma explosão líquida, uma mudança de atmosfera que se fez decisiva. O meu corpo foi envolto em vapores líquidos e algas foram serpenteadas por sereias imaginárias à minha volta. E fiz-me rio, fiz-me água e por instantes pensei nunca mais voltar à tona.

Dentro de mim houve uma mudança, uma confusão de ideias, um regresso à origem. Dentro de mim algo foi renovado e ficou inteiro. Algo de indefinido e transitório, algo que esteve sempre lá e que não se diz com uma palavra, foi limpo e ficou brilhante. Algo cujo nome eu não conheço e a que, por isso, chamo de ser, de estar aqui, de estar presente enquanto a existência decorre. Algo a que chamo simplesmente espírito ou alma, eu ou mente, foi redimido. Foi esvaziado de toda a inquietação e de toda a angústia e depois preenchido de amor e compreensão.

Mas quando tu mergulhas comigo e nos perdemos um no outro aprendo a chamar-nos por um só nome e esqueço-me de mim. E quando emergi da água e não estavas ali, pensei que é a tua luz que ilumina o sol e que o faz tão brilhante, que é a tua tranquilidade que serena a água e a faz tão redentora, que é a tua alegria que faz os insectos voltearem e esvoaçarem em busca de néctar. Foi então que soube que não estava só no mundo e que te dei o nome de mulher.

terça-feira, abril 11, 2006

Os jardins suspensos


Criaturas que se beijam à chuva, difusas, de novo no escuro.
No jardim suspenso, silêncio, não fales!
No jardim suspenso ninguém dorme.
No jardim suspenso...
No jardim suspenso a apanhar auras na lua,
as minhas mãos ficam com forma de anjos.
No calor da noite os animais gritam.
No calor da noite a entrar dentro de um sonho...

A cair, cair, cair, cair pelas paredes adentro
A saltar, saltar para fora do tempo
A cair, cair, cair, cair para fora do céu
Tapo a minha cara quando os animais choram
No jardim suspenso...
No jardim suspenso...

Criaturas que se beijam à chuva, difusas, de novo no escuro.
Num jardim suspenso, mudo o passado
Num jardim suspenso a usar peles e máscaras.

A cair, cair, cair, cair pelas paredes adentro
A saltar, saltar para fora do tempo
A cair, cair, cair, cair para fora do céu
Tapo a minha cara quando os animais morrem
No jardim suspenso...
Quando os animais morrem
Tapo a minha cara quando os animais morrem
No jardim suspenso.

The Cure?

segunda-feira, abril 10, 2006

-Oh... Não? Desculpa! Eu pensei que...

-Oh... Não? Desculpa! Eu pensei que... Esquece! Esquece! Tenho de me ir embora...
-Não fiques assim. Eu gosto imenso de ti. Respeito imenso as tuas opiniões e gosto imenso do teu sentido de humor. Fazes-me sentir bem. Mas não acho que haja entre nós esse tipo de energia, entendes?
-Por favor... Não faças isso. Não te desculpes. Não vês como isso é humilhante? Deixa-me em paz.
-Não quero que te vás embora assim. Não podemos ficar amigos?
-...
-Eu queria muito que ficássemos amigos.
-Não vês que quanto mais estivermos juntos pior será? Que a cabeça teima em não entender as palavras e em fazer de contas que o que o coração quer é possível? Que ao pé de ti vou sempre acreditar que é possível?
-Que é possível?
-Bolas! Não vês que não há uma solução pacífica? Que o amor não correspondido é uma violência constante? Que me aniquilarias lentamente? Que não haveria de sobrar nada de mim até toda a tua imensidão estar em mim? E para quê? Para que tortuosamente te fosse expurgando de mim, como uma doença? Amputando as partes de mim demasiado contagiadas? Até ficar apenas os restos, o que sobrasse de mim sem ti?
-Estás a exagerar um bocado não?
-Acho que não. Prefiro começar a fazer isso agora, prefiro impedir que o mal alastre, prefiro matar-te em mim agora.
-...
-Oh, eu sei! Não me entendes. Não consegues compreender. Vais pensar que se trata de uma vingançazinha qualquer, de uma teima de amor-ferido. Estar do teu lado é muito fácil. E muito irresponsável. Devia ser proibido andar por aí a dispensar ternura inconsequentemente. Será que as pessoas não percebem quando estão a escravizar os outros com o seu à-vontade afectuoso?
-Vou-me embora. Tenho pena que penses assim.
-O que nós queremos não é conciliável. Nunca vou deixar de sentir algo de muito especial por ti, mas não posso... Não dá.
-...

Haiku Primaveril

As acácias
Desenham a sua sombra
No rio que passa.

quinta-feira, abril 06, 2006

O estertor de Marat


Com o coração a bater nervosamente partiu da Normandia para Paris.

Lia as "Vidas Paralelas" de Plutarco. Aí se comparavam, duas a duas, biografias de gente famosa. Gregos vs. Romanos. Alexandre vs. César. Gigantes.

Sonhava com coisas grandiosas. Comprou uma faca.

Aproximou-se do homem, do monstro, do assassino que fazia listas de carne para o matadouro, inocentes e culpados, as purgas...

E soube não desviar o olhar quando lhe espetou a faca no peito.

«Matei um homem para salvar 100'000.»

Charlotte Corday. Nem tinha 25 anos.

quarta-feira, abril 05, 2006

Madame Blavatsky

A Blavatsky é o paradigma da época. Foi à Índia e fartou-se de escrever livros. Era tão convincente para a sua altura que gerou todo um culto à sua volta. Juntamente com o Eliphas Lévi deve ter sido das pessoas que mais correntes místicas e associações esotéricas influenciou.
O Fernando Pessoa, que até traduziu um livro dela, começou por ser muito entusiasta de tudo o que ela dizia. Depois desiludiu-se e chamou-a de fraude. No final concluiu: «A Madame Blavatsky é uma embusteira, mas não há dúvida que ela teve contacto com entidades superiores a nós.» Típico! Uma no cravo outra na ferradura!
Dizem que tinha explosões de mau génio em que insultava tudo e todos exibindo o fogo cru da sua natureza russa - um pouco como Ivan, o terrível, que percorria o seu palácio aos gritos e a matar tudo o que se mexia.
É impressionante tomar consciência de quanto daquilo que é a nossa cultura hoje está impregnado do que disse e pensou gente como esta Helena Petrovna Blavatsky.
Pessoalmente, não é das minhas preferidas. Nunca fui muito simpatizante da Teosofia. Mas há sempre alguma coisa interessante a retirar.

sexta-feira, março 31, 2006

Descontrolo

As luzes dançam coloridamente, por entre o fumo que espirala e sob a música imensa. É um encantamento, um rito imenso que o arrasta lá para baixo, para a pista de dança, arena onde o descontrolo é desenfreado. Corpos ilusórios e alegres, pessoas envolvidas na música e em conversas que mal conseguem ouvir.

Aquela rapariga dança como se estivesse sozinha. Desce as escadas desviando-se de dois homens abraçados e a falar ao ouvido um do outro. Que silêncio que transborda dela. Dirige-se ao bar junto à pista e pede mais um copo.

A música ergue-se, tremenda, como se fosse uma onda prestes a rebentar. Lúcifer sente um arrepio na barriga, uma chicotada que o atinge pela espinha acima, por dentro, que vem de dentro do abismo. É por causa destas coisas...

O mar turbulento da dança arrasta o seu corpo por entre os escolhos da noite, Lúcifer à deriva na música que começa a crescer, como um prenúncio de batalha.
Espiralar. Subir aos céus. Voar em teus braços luminosos. Vem-me buscar agora. Vem-me buscar. E ela dança por dentro, como é possível dançar tão por dentro?

As luzes que piscam cada vez mais depressa e a escuridão à volta deixam apenas espaço para a música e Lúcifer esquece-se de tudo. A rapariga desapareceu, talvez tenha caído para dentro de si. Onde está o meu copo? Desapareceu tudo. Tudo. A escuridão parece abater-se sobre si, saindo das paredes e dos corpos à sua volta. A escuridão sai de dentro de si próprio.

E a música explode, estala como lenha no fogo, implode e volta a explodir com estrépito. O corpo vibra interiormente. O tecto está cheio de estrelas e de luz. Vem-me buscar agora. Deixa que seja agora. No meio desta beleza toda. Deixa-me cair para dentro da música.

A parede que trava o corpo. A dor que o atinge na cara, de súbito. Os ânimos exaltados de um homem que grita e que o empurra. O chão que lhe suporta o corpo caído como uma pedra. Um pontapé no estômago. A rapariga? Para dentro de si... Caída para dentro de si... Lilith. Samael...

A espada que emerge das águas. A montanha que se ergue do mar com um estrondo ígneo. A serpente que se desenrola desde a cauda até à cabeça. Lúcifer acorda dentro do sonho e vê os demónios que o rodeiam, aguardando as suas ordens. Elementais, criaturas salmodiantes, sicofantas, acólitos da noite. O sangue... O sangue... Ela dançava sozinha, dançava perdida. Sabes o que é que estás a fazer agora?

segunda-feira, março 27, 2006

O beijo

Lúcifer mergulhou na noite. Beija-me, disse ela sentada na rocha. Os candeeiros emitiam luzes ténues e as ruas estavam desertas. Que linda que ela estava ali deitada, cheia de vida, ansiosa e com os lábios entreabertos... O sol aproximava-se do poente e o céu alaranjava. O som dos seus passos ecoava nos caixotes do lixo e nas montras das lojas fechadas: toda a cidade dormia. Lúcifer galgou as escadas do prédio e entrou em casa. Quando se aproximou, lembrava-se bem, ela deixou descair um pouco a cabeça para trás avançando os lábios para o seu beijo que desceu sobre o pescoço exposto, fazendo prolongar a sua inquietação. Beija-me, repetiu sofregamente, na boca.

sexta-feira, março 10, 2006

Palimpsesto

Precompletamorenchesesensamoçõesmedesejosamente.

Enigma do desejo

A nuvem que se estende nua sobre o sol
Coisa doce e feminina, essência, mulher
Força de concretização, determinação ou pujança
Que apraz com requintes subtis, faz fruir com suavidade
Coisas rudes e fortes, masculinas
Que permitem perceber o mundo, que o enchem de luz e de som,
   de cheiro e carícias, de sabor.
Mas há mais, há mais a dizer:
Perturba, faz estremecer, sair de si agitado, descompassado
Coisa forte e rude, masculina,
Que bate com amor, que sofre com brandura, e que ama com verdade...

quinta-feira, março 09, 2006

Perlirariraricorrendolirarirari

Perlirariraricorrendolirarirari-cantandolirarirarirará pelas ruasrirará encontrambolhei-me num jardim de avedebicantes e pomborrulhantes criaturitas.

Fizemostraram-me dentebicadas armas e olhelos provocantimidantes ao que eubeubeubeubéu reagesbocei com uma partilargadigritante que os fez a todos voadispersar. E eu, tristipesado, que não sei esvoarasar fiquei pesagravitaduimudo num jardim cheio de nada.

quarta-feira, março 01, 2006

Como era aquela canção?

O chão sob os pés. Como era aquela canção? Havia uma espessura aromática no ar, não havia? E depois tu dizias para nos irmos deitar lá fora, na relva. O chão era madeira sob os pés, madeira que estremecia quando nos perdíamos em brincadeiras daquela época. Nunca fomos só isto. A luz entrava esparsa mas brilhante por entre as tábuas das portadas sempre fechadas. Foi num dia de trovoada que o Rui as tentou abrir para podermos ver os relâmpagos que rasgavam o céu. Ficámos de boca aberta. Depois disso nunca mais as conseguimos abrir. Nunca fomos sequer estes momentos, estes pedaços maravilhosos de encontros. Gente feita de pequenos encontros perdidos no tempo. O chão estremecia quando descias do sótão a correr. Os cabelos voavam atrás de ti. O teu riso que me chamava e me fazia correr também. Ríamos e deslizávamos pelo corrimão. Lá em baixo fazia sol. A terra que se metia por entre os dedos dos pés. O cheiro a primavera. E as nuvens a passar, como se o tempo estivesse parado.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

The figurehead

Sharp and open
Leave me alone
I'm sleeping less every night
As the days become heavier and weighted
Waiting
In the cold light
A noise
A scream tears my clothes as the figurines tighten
With spiders inside of them
All the dust on the lips of a vision of hell
I laughed in the mirror for the first time in a year.

A hundred other words blind me with your purity
Like an old painted doll in the throws of dance
I think about tomorrow
Please let me sleep
As I slip down the window
Freshly squashed fly
You mean nothing
You mean nothing

I can lose myself in chinese art and american girls
All the time
Lose me in the dark
Please do it right
Run into the night
I will lose myself tomorrow
Crimson pain
My heart explodes
My memory in a fire
And someone will listen
At least for a short while

I can never say no to anyone but you

Too many secrets
Too many lies
Writhing with hatred
Too many secrets
Please make it good tonight
But the same image haunts me
In sequence
In despair of time

I will never be clean again
I touched her eyes
Pressed my stained face
I will never be clean again
Touch her eyes
Press my stained face
I will never be clean again
I will never be clean again
I will never be clean again
I will never be clean again

Arame farpado

O arame farpado está sempre com os dentes afiados. Sempre à espera como um enorme cão-de-guarda, Cérbero ao serviço da ignorância e do ódio. Sempre o ódio, como uma enorme nuvem negra, pairando sobre as cabeças das pessoas todas do mundo, prometendo uma tempestade como nunca se viu. Nunca ninguém viu o ódio, ele só aparece quando já estamos todos cegos.

Só se vê o desalento. O desalento que atira uns trapos esquálidos para cima dos dentes afiados, tentando minimizar a dor, tentando evitar o rasgar-se da carne... Quando passamos sobre o arame farpado nunca conseguimos sair incólumes. Nunca a nossa carne permanece pura e intocada. É a perda da inocência. Como se ela ficasse ali, devorada por Cérbero, à porta do Inferno, enquanto fugimos em debandada do ódio que se aproxima. Enquanto fugimos da dor, da dissolução da consciência, do horror das mandíbulas de Saturno.

Salto para o chão e caio na lama. O muro era alto. Ouço os cães a ladrar, aproximam-se. Há estampidos no ar, tiros de armas que não conhecem o amor, dor e gritos dos meus irmãos que ficaram presos nas bocas de Cérbero, com sangue a escorrer da alma... Há uma escuridão absoluta no mundo, um fim do tempo, uma iminência de absoluto.

Eles vêm aí. Corro sem olhar para trás, sem ouvir os gritos, sem hesitar, sem os ouvir, que me perseguem, que me querem destroçar. E ao fugir sei que abandono tudo de vez, que me abandono ali, prisioneiro para todo o sempre, e apenas procuro a salvação da minha existência miserável.

O riso infernal abana tudo, até mesmo o chão, e é um riso escuro e malévolo, muito longe do contentamento, cheio de desprezo. É um riso que me faz tremer até aonde o meu ser dorme em mim...

O rio aproxima-se. Mais arame farpado. Estou perdido no Inferno.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Nome de uma Colina Neozelandesa

Taumatawhakatangihangakoauauotamateaturipukakapikimaungahoronukupokaiwhenuakitanatahu
«Aqui é o lugar onde Tamatea, o homem dos grandes joelhos, que deslizava, trepava e engolia montanhas, conhecido como o traga-mundos, tocava flauta para a sua amada.»

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Alma ao Vento


Kokoschka voltou da Iª Guerra ferido e foi considerado mentalmente instável, mas continuou a pintar.

Conheceu a Alma e teve com ela uma relação intensa e tempestuosa. Amou-a como se a conhecesse desde sempre. Depois, a Alma acabou a relação por temer ser consumida por essa paixão tão intensa. Kokschka amou-a até ao fim da vida.

Aqui está o seu tributo a ela, o quadro que ele lhe dedicou: A Noiva ao Vento.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Botticelli e A Calúnia de Apeles


O julgamento de Apeles é como muitos outros que conhecemos.

O rei e juiz está acompanhado pela Ignorância e pela Suspeita, suas conselheiras. Estas murmuram-lhe constantemente ao ouvido palavras venenosas, razão pela qual ele tem orelhas de burro.. De olhos virados para o chão, ele nem vê o que se passa.

A Inveja vem perante ele, acusadora, e estende um braço muito comprido para o alcançar. Traz a Calúnia pela mão.

A Calúnia tem uma tocha acesa na mão como se viesse mostrar a luz. A Malícia e a Fraude são as suas companheiras e não param de a adornar com flores, os atributos da pureza, que entrançam nos cabelos da sua senhora, procurando disfarçá-la.

Apeles vem, na figura de um homem inocente, arrastado pela Calúnia que o agarra pelos cabelos, acusadora. Ele está despido e de mãos juntas, apelando a uma justiça divina, superior àquela terrível fantochada.

Atrás deles, a horrível figura do Remorso olha sorrateiramente, por cima do ombro, para a Verdade.

A Verdade aponta para cima, remetendo o inocente à justiça divina, e aparece nua, sem nada para esconder, tal como o Apeles.

Todos os outros ocultam a sua verdadeira natureza com muita roupa, alguns até evocando a pureza.

Quem já foi caluniado assim, não o esquece certamente. A mim o que me arrepia mais é a luz que a Calúnia traz e o olhar horrendo do Remorso...

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Primavera de Botticelli


O jardim de Vénus, coberto de plantas e cheio de flores, perfumado de natureza, tão rico que nele foram identificadas mais de 500 plantas e flores diferentes. Delicioso lugar de devaneio...

À esquerda, Mercúrio protege o jardim, atento e de espada à cintura, capaz de afastar até os mais temíveis adversários.

Seguem-se-lhe as três Graças, filhas de Júpiter, provindas da tradição grega, representando a alegria, o encanto e a beleza, na sua dança de celebração.

À direita, Zéfiro, o vento oeste, avança violentamente atrás da ninfa que entra no jardim. É uma alusão ao rapto de Chloris, que ele tomou para si.

Arrependido, fez dela a Deusa Flora e deu-lhe domínio sobre a Primavera. Vêem-se flores a sair-lhe da boca...

«Enquanto ela falava, os seus lábios exalavam rosas primaveris: Eu fui Chloris, e agora chamam-me Flora.» (Ovídio)

A Primavera vai entrando no jardim, lançando flores por onde passa, perfumando tudo, enchendo tudo de maravilha.

Ao fundo, observando e controlando tudo, senhora do jardim, está Vénus. E no ar, voando, cego e armado com o seu arco, o seu filho Cupido aponta para as Três Graças e prepara-se para lançar uma flecha de amor...

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Nós

(x + y)^2 = x^2 + 2xy + y^2 = x^2 + y^2 + 2xy.

Quando mergulho em ti, quando mergulhas em mim, cada um de nós brilha por dentro. Há qualquer coisa, porém, para além disso, que se manifesta silenciosamente num espaço que antes não existia e que se chama nós. É que quando eu mergulho em ti, há uma parte de mim que se perde em ti. E quando mergulhas em mim, deixas uma parte de ti no meu interior. E é essa essência partilhada daquilo que cada um de nós era, que forja esse espaço em que nos amamos.

Tão perdidos...

O mar à nossa volta... Estamos tão perdidos. Somos um destroço atirado pelas vagas incessantes. Somos um destroço... O mar à nossa volta, à nossa volta, não tardará a submergir a nossa pobre barca e com ela todo o universo.

O mar à nossa volta não pára nunca de rugir, tremendo, erguendo-se a alturas impossíveis, com a sua força inimaginável...

E nós, encolhidos na pobre barca com que tentamos em vão atravessar os mares do mundo.

E nós, tão perdidos, tão perdidos. Damos as mãos e olhamos para a imensidão do infinito.

Tens lágrimas nos olhos e eu sorrio antes da vaga final dissolver tudo...

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Um dia marcante

Hoje é um dia marcante.
Uma velha alma, velha guerreira, que já se preparava para abandonar a matéria que a envolvia há muito tempo, resolveu finalmente partir.
Dois bebés, um menino e uma menina gémeos, duas flores maravilhosas, geradas num ventre quente e amoroso, resolveram despontar e nascer.
Que os recém-nascidos sejam abençoados por todas as entidades benfazejas que povoam a terra.
Que aquela que partiu voe, voe, voe para longe, muito longe, completamente, e volte a ser toda feita de luz.
Que todos os ciclos se cumpram até ao fim.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Enigma, os dois amantes do amor

De amor, de chuva e de mar, de água, é a ilha da distância
E tu vives lá morrendo de tristeza, de solidão,
Afastada da minha paixão, estiolando, infeliz, amor!

Percorrendo todos os portos do mundo, bebendo o néctar da tua presença,
Dos aromas que a tua pele emana, mordendo os lábios de ansiedade,
Mordendo os lábios de desejo, esperando, amor, encontrar-te a qualquer momento
Vivo os meus dias gelando sem o calor do teu cabelo, sem o teu calor,
O teu beijo que me tape, amor, a boca, que me cale os pensamentos...

De madrugada, levas o teu corpo até à praia, toma-lo, amortecendo-lhe os passos,
Entre as mãos e dizes-lhe que falta pouco, que vou buscar-te, amor!
Então olhas para o mar e lanças uma súplica ao vento,
Vais ficando louca, morando nas dunas, dormindo na areia, esperando.

E eu procuro o teu nome por todos os mares, até escutar na voz suave do vento
O teu chamamento, o amor, amor, que me guia até a ti.

E quando vejo o teu corpo frágil estendido no campo, amor,
Deitado, vibrante, sinto a sede, amor, dos teus beijos,
A paixão faz faísca, morde, agarra, abraça, diz que saudades,
Que saudades, tonto, linda, louco, boba, morde-me, beija-me!

Mergulho na tua lagoa, abri, amor, a tua caixa de pandora,
E já não a quero mais fechar, anda morena, criatura de bosques e sombras
Anda para o coração da terra, de onde brotam orvalhos e outros néctares,
Vou-te descobrir a pele e o amor, vou-te descobrir toda...

Quero ficar aqui para sempre, contigo aninhada nos meus braços, menina,
Morando em campos sonhados e ilhas encantadas
Com as ondas que desafiam orlas impossíveis, costas íngremes,
Mar aberto e as vagas a tocarem a sinfonia mortal do tempo
Enquanto vivemos dos beijos da boca um do outro,
Enquanto ficamos cada vez mais perto, amor...

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Enigma do Amor Implícito Visível

Fazem carícias por toda a parte
Unem as bocas com ânsia e paixão
Sofrendo uma só dor, vénus e marte,
Ardendo na entrega e na fusão...

O inspirar-te assim transcende,
Derruba as barreiras, é sagrado
Orla o nosso enleio, rescende
Sabe a mar, a lágrimas, a fado...

Alcançar tal deleite, paroxismo,
Mergulhar no amor, nessa loucura
Abandonar-me, imerso em ternura

Navegar nas ondas do nevoeiro
Trocar-me por um outro, mais inteiro,
Encontrar o meu destino no abismo...

S.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Novo Enigma do Amor Implícito

 !
Onde dormem os teu cabelos quando estás só?
à tristeza da tua ausência passeia-se sobre mim como quem ri,
Dóis-me e és em mim um lugar inteiro, toda uma parte vazia
Incendiada, queimada, devastada, cheia às vezes de doçura...

Sei-te no espaço, sinto a tua vibração intensa
No cosmos, através do ar, chegando-me em vagas
Entrando por mim adentro como rebentação
Marcando-me como areia molhada, incessantemente.

Inerte, o meu corpo caído na praia espera
Algum destroço que venha dar à costa
Um escolho que me traga um bocado de ti
Saído das profundezas do mar imenso.

Atravessaste a fronteira invisível
Não voltas mais, meu amor, nunca mais...
As cores do arco-íris fazem brilhar as ondas
Vagas rebentam sem cessar sobre a praia.

Lânguido o meu corpo, as ondas que me puxam
Os sons do mar a chamar por mim
Vem, meu filho inocente, vem perder-te
Não vale a pena lutar contra as forças da criação.

E todos os teus momentos que guardo em mim
Saem de uma só vez para o mundo exterior
Onde te vejo, maravilha fantasmagórica,
Nascida das brumas, formada por sombras!

Rimo-nos na nossa loucura, abraçamo-nos,
Amor, damos o beijo que nunca mais daríamos
Mergulhamos um no outro e perdemo-nos do tempo...
O mar parece crescer sobre nós e começa a rugir.

Então a maré começa a subir à nossa volta
Uma gaivota levanta voo em direcção à luz
Que brilha palidamente prateada, misteriosa,
É noite em nós, e a maré a subir à nossa volta.

Trocamos beijos, a água cobre-nos quase completamente
Amamos, um no outro, o fim do mundo

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Ataraxia

Existe um estado de espírito que foi pensado como sendo o melhor para o ser humano. É o estado em que nem os contentamentos e os prazeres agradam demasiado, nem as tristezas e as carências magoam demasiado. Esse é o estado de ataraxia em que o espírito apaziguado nem se apega à felicidade, nem à dor, e vive em tranquilidade e felicidade (ou verdadeiro prazer Hêdonê).

O que acontece, acontece e atravessa cada um. Não permanece em infinitas ramificações interiores, como uma metástase emotiva que fosse deturpando o acontecimento inicial até o tornar disforme e irreconhecível.

Quando algo é demasiado bom, quando gostamos de algo com todo o nosso ser, deixamo-nos levar e, depois, a ausência, o fim, desse algo torna-se tristeza, melancolia, dor, sofrimento.

Quando algo é demasiado mau, deixamo-lo permanecer, revivemo-lo vezes sem conta interiormente, quase de forma masoquista... Queremos ouvir as coisas que mais vão fazer essa dor vir à superfície, procuramo-la como quem procura uma referência numa noite agitada no mar.

Quem vive em ataraxia vive sem sobressaltos e pode-se concentrar mais numa vida de contemplação, meditação ou reflexão filosófica. Quem se entrega de corpo e alma às paixões vive emoções indescritivelmente belas, arde em fogos de grandeza incomensurável, mas queima-se nesses fogos e fica preso a essas paixões. E depois, não se consegue resguardar do sofrimento e entrega-se, também de corpo e alma, a ele.

Se vale a pena? É uma pergunta sem sentido. Cada um tem a sua resposta própria. Eu vou alternando. Ora me entrego totalmente às paixões, ora mantenho um equilíbrio distanciado e me permito a reflexão meditativa. Acho que não era bem isso que o Epicuro tinha em mente...

quarta-feira, janeiro 11, 2006

O tempo fluido

O tempo é o que fizeres dele. Aqui pensamos: passado - que aconteceu? quem sou eu?; presente - o que faço?; futuro - para onde vou? E assim dividimos o tempo em: identidade (colectiva e singular); acção; e projectos. Mas isto não precisa de ser assim!

Os índios Hopi da América Central tinham uma visão do tempo bastante diferente. O tempo dividia-se em Manifestante e Manifestado. O Manifestante incluía não só o que se estava a fazer (presente) mas também tudo aquilo que se pensava e que se pretendia fazer (futuro), incluindo as ideias e os sonhos, toda a vida da mente. Assim que uma acção era concretizada ela acabava e passava a fazer parte do Manifestado. Então pensavam: manifestado - que aconteceu?; e manifestante - quem sou eu? o que faço? para onde vou? E assim podemos dividir o tempo em: identidade colectiva; e identidade singular, acção e projectos.

O tempo fluido, como uma linha que não se parte, apenas dividida para que a possamos melhor compreender.

O interesse desta visão, para mim, é a ideia de que o futuro, os nossos sonhos e projectos, já estão a acontecer. Acontecem em nós, são acções a longo prazo, primeiro interiores e, depois, exteriores. Quando se materializam já estão a morrer.

É como fazer uma viagem: primeiro saboreamos a ideia, imaginamo-nos lá, sonhamos sonhos exóticos e imaginamos aventuras insólitas coroadas por gastronomias delirantes; depois partimos e a partida é um agudizar dessa imaginação, quase como se já estivéssemos lá; quando chegamos, por vezes, sentimos que não conseguimos viver tudo o que tínhamos imaginado, que é demasiado, que não dá para absorver tudo; no regresso, saboreamos a viagem que fizemos como um todo. Nessa totalidade, o papel da expectativa inicial ocupa um lugar muito importante. No regresso, é essa expectativa que nós reflectimos na experiência vivida e que nos faz dizer da viagem: uau!

terça-feira, janeiro 10, 2006

Canto de Mim Mesmo

Visitantes e inquisidores por toda a parte,
As pessoas que encontro, o efeito sobre mim da minha vida anterior ou da comarca e
da cidade em que vivo, ou da nação,
As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores, velhos e novos,
O meu jantar, roupa, relações, aparência, cumprimentos, dívidas,
A indiferença real ou imaginada de algum homem ou mulher que eu amo,
A doença de alguém da minha família ou a minha própria, ou as más-acções ou perdas
ou falta de dinheiro, ou depressões ou exaltações,
Batalhas, o horror da guerra fratricida, a febre das notícias duvidosas,
os acontecimentos tempestuosos;
Estas coisas vêm até mim dias e noites e vão-se embora de novo,
Mas elas não me são a Mim, eu próprio.

Afastado do turbilhão está o que eu sou,
Divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário,
Olha para baixo, está erecto, ou dobra um braço sobre um determinado descanso
impalpável,
Olhando com a cabeça descaída para um lado, curioso de ver o que se seguirá,
Tanto dentro como fora do jogo, e observando-o, reflectindo sobre ele.

Para trás, eu vejo nos meus próprios dias, onde eu me debati através do nevoeiro
com linguistas e opositores,
Que não faço troça nem discuto, testemunho e espero.


Walt Whitman

quinta-feira, janeiro 05, 2006

O mar, o bosque

No teu rosto voltado para o mar, na tua respiração feita de fumo,
uma imensa tristeza, sem falar, uma distância dolorosa e sem rumo.
Damos as mãos perante a maré nevoenta e em nós há explosões silenciosas.
Damos as mãos na colina cinzenta e, em nós, tempestades tumultuosas
que envolvem as palavras e paixões, suspiros que nos tumultuam os corações,
despedidas que ficarão por fazer, bocas ansiosas que nunca se beijaram,
silêncios que morrem devagar, sem se ver, perdidos nas colinas que os abraçaram.

Às vezes um cheiro a pinheiro, a resina, que te abraça o corpo de húmus feito,
às vezes um sabor a musgo no teu peito que faz de ti bosque, faz-te árvore-menina.
Corremos descalços pela terra macia, corremos e perdemo-nos, o sangue nas veias
Os corpos e as árvores envoltos em teias que a paixão teceu com o luar na noite fria.
Quando chegarmos à clareira vou-me perder vou cair no teu olhar de alecrim
Vou abandonar tudo o resto e, então, morrer... Quando nos vierem procurar
apenas uma flor na terra, apenas uma sombra a esvoaçar...

terça-feira, janeiro 03, 2006

Ao fechar os olhos...


Ao fechar os olhos começo a ver, pois todo o dia eles passam por coisas sem esplendor mas, quando eu durmo, em sonhos, eles voltam-se para ti,e obscuramente iluminados vislumbram a luz na escuridão.

E tu, cuja sombra as sombras ilumina... Como a forma da tua sombra tornaria alegre o dia claro com a tua luz muito mais clara quando, para estes olhos que não vêem, a sua penumbra brilha tanto!

Como os meus olhos seriam feitos de benção ao olhar para ti perante o dia luminoso, quando, mesmo na noite morta, a tua bela sombra imperfeita fica nos meus olhos fechados através do sono pesado!

Todos os dias parecem noites até eu te ver, e as noites são dias brilhantes quando os sonhos te trazem a mim.

Shakespeare

A Fonte

No éter silencioso há um ponto invisível que marca o início de um novo ciclo. Rodamos sobre o nosso eixo através do espaço sideral e nunca largamos a mão do sol, para não nos perdermos. É como um passeio no parque. As estrelas são as árvores e as flores que nos demoramos a observar, o sol é o pai paciente que espera que estejamos prontos para continuar o passeio e nós, do coração do nosso planeta azul, somos a criança inocente, que não sabe o que faz no mundo tão imenso...

Novo ciclo, mudança, voltar ao trilho, seguir a luz, parar e recomeçar.

O tempo é como uma fonte de água fresca, sempre a jorrar experiências novas e refrescantes. E eu deixo-me levar pela água, rio abaixo, seguindo o curso da fonte, percorrendo os caminhos do tempo, cumprindo o que tem de ser.

Não vale a pena lutar contra a corrente. A melhor maneira de evitar aquilo que não queremos é ir na sua direcção, desarmados, de sorriso na cara, e cumprimentá-lo respeitosamente, passando-lhe ao lado: água a fluir no rio.