terça-feira, maio 31, 2005

É, então, assim?

Havia, numa aldeia, um grande mestre que vivia em contemplação. Um dia uma rapariga engravidou e, sob a pressão dos seus pais para revelar o nome do seu amante, acusou o mestre. O pai da rapariga esperou que a criança nascesse e foi a casa do mestre. Disse-lhe: - Como é possível!!! Tu que nos inspiravas a todos! Toma! Fica com ele...
O mestre limitou-se a dizer: - É, então, assim?
Ele acolheu a criança e iniciou a sua educação. Passado uns tempos a rapariga, não aguentando mais, revelou aos seus pais que não passava tudo de uma mentira inventada para proteger o seu amante, um rapaz da aldeia.
O pai dela foi ter com o mestre e pediu-lhe mil desculpas. Pegou na criança e disse:
- Vou levá-la comigo.
- É, então, assim? - limitou-se a dizer o mestre.

sábado, maio 21, 2005

inesperado

O inesperado oculto por detrás das nossas projecções de sentido, pequeninas e mesquinhas, surge grandioso e eloquente, cobrindo-nos de vergonha perante a sua inegável verdade. A realidade é tão real, a vida transborda de sentido que nos ultrapassa e, por isso, transcende qualquer ficção. A boa ficção é a que mais se aproxima da riqueza inesperada da vida. Fixá-la já é diminuí-la, pois ela prospera na ambiguidade e na indecisão.

sexta-feira, maio 20, 2005

O pianista

Foi encontrado um homem numa praia. Estava encharcado e não falava. Ninguém sabia o seu nome. Foi levado para um hospital. Ele continuava a não falar. Para tentarem perceber quem ele era, deram-lhe papel e um lápis. O homem desenhou um grande piano, em detalhe, a fazer sombra.
His sketch of a grand piano
Resolveram levá-lo à capela do hospital onde estava um piano. Ele sentou-se e começou a tocar. Os que ouviram dizem que foi um concerto de várias horas, sem pausas, impressionante. Ninguém sabe ainda quem ele é.

Mesmo quando tudo o resto desaparece, a música continua a ouvir-se. De profundis clamo ad te Domine, «das profundezas chamo por ti Senhor». A música é a linguagem universal.

Piano man

quinta-feira, maio 19, 2005

Últimas palavras de gente famosa

O ano passado saiu um livro que continha as últimas palavras de várias pessoas famosas. Estive a ver devagarinho e era estranho. Os que mais me tocaram foram estes três.
O primeiro, não me lembro de quem era, disse "Já me sinto muito melhor!", e morreu.
O segundo, era o Pancho Villa, disse: "Não me deixes morrer assim, diz-lhes que eu disse alguma coisa!" e morreu.
O último era o Goethe. À medida que a morte se aproximava ouviram-no a dizer: "Luz! Luz! Mais LUZ!" e morreu.
O primeiro ficou-me porque me fez pensar que, de facto, não sabemos nunca a hora, nem o dia. Há uma parábola da Bíblia que diz «Vigiai e orai, que não sabeis a hora nem o dia!» e acho que é mesmo isso. Pode ser já, pode ser daqui a muito tempo. Não nos podemos dar ao luxo de viver mentiras ou perder tempo com coisas que não nos interessam. Por isso é que dá cabo de mim ver as pessoas na cidade, com as suas caras cinzentas, todas a marcar passo e a fazer o que não querem fazer...
O segundo fez-me sorrir da nossa patetice que nos faz dar tanta importância a coisas tão ridículas! A nossa impressão de que somos muito importantes. A nossa recusa do abismo. Eu não digo que aceitar o abismo seja tarefa fácil! Digo que é preciso pelo menos olhar na direcção dele e procurar ver o que lá está e se é, ou não, abismo.
O último maravilha-me. Gostava de dizer algo do género. Luz ou água a reflectir luz. Água a reflectir luz e a cair sem parar, como chuva no verão... Morrer assim é evaporar. Morrer assim é voltar para o coração cósmico de onde viemos.

ausência

Lá no cimo da montanha há um tesouro
para quem souber não o ir procurar...

sábado, maio 14, 2005

haiku

As folhas caídas
morrem num tapete
de húmus vivo.

***

A Primavera volta.
As flores caídas
regressam às árvores.

***

A tempestade pára.
A aranha começa
uma teia nova.

***

O sol no horizonte.
Chega a hora
de uma nova luz.

avós-ontem

Os avós como flores delicadas de pétalas valiosíssimas,
avós-testemunho e avós-memória, histórias vivas de outras eras,
sabor a hortelã e cheiro a lareira, evocação altíssima,
iminência de absoluto.

Lembrança de tardes sem fim, da cabeça nos regaços,
do gesto carinhoso, avós, lembranças das casas e dos quartos.

Os quartos dos avós estão cheios de coisas desconhecidas
e as suas casas são braços abertos para nos acolher
para nos apertar junto ao seu peito e fazer rir de alegria.

sexta-feira, maio 13, 2005

o despertar

Wir sind dem Aufwachen nah, wenn wir träumen dass wir träumen...
(Estamos perto do despertar quando sonhamos que sonhamos...)
Novalis

sexta-feira, maio 06, 2005

melancolia

as vozes vêm do oculto que há em mim.

as vozes ecoam em mim, vindas do interior...

eu sou a membrana fina de um fogo primitivo que desconheço, em mim.

anoeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee