terça-feira, dezembro 19, 2006

Delírio outonal


Ouvimos aquilo que já estávamos a pensar. Dizemos o que tínhamos planeado dizer antes de ouvir o que nos dizem. A comunicação é uma coisa rara. Implica que se ouça e ouvir é tão difícil...

Lembro-me sempre da primeira vez que percebi que as pessoas se escondem por detrás das palavras. Então com a religião é demais! Como os textos religiosos são sempre ambíguos, são perfeitos para serem usados como justificação para qualquer fim.

As palavras de Cristo que aparecem na Bíblia são muito simples e sem artifício, mesmo as parábolas são claras, e há 2000 anos que são usadas para dizer tudo menos aquilo que dizem: estamos todos no mesmo barco, é preciso haver amor.

As palavras de Buda sofrem um destino semelhante, basta pensar em quantos budistas não vêem Buda como o seu «Deus»! Buda dizia que todos nós somos potenciais budas. Recusava a ilusão e abraçava a verdadeira natureza das coisas, buscando o despertar da mente, que nos dizem ter alcançado.

Não interessa quais são as palavras, posso sempre usá-las para dizer outra coisa.

Quando a vela explode uma faísca no interior do cilindro e o fluido violento se aproxima dela, então, meu amor, tu sopras o teu beijo suave e o espasmo do pistão faz-se movimento, e o corpo pesado é lançado pelo espaço, e tudo volta ao princípio.

Na decomposição do conteúdo dos sacos pretos, no coração da lixeira, o voo das gaivotas faz-se um só grito. O sol encoberto de fumo e fedor, os sacos que se derramam pelo chão de lixo e exalam as suas entranhas fétidos, tudo conspira para a harmonia do todo.

E os camiões chegam sem cessar, trazendo a matéria-prima do cosmos no seu interior.

E o teu ventre puro, mãe, desfaz amorosamente todo aquele horror e fá-lo cada vez mais pequeno, até que tudo se liberte em vida luminosa.

E quando o meu cadáver ainda fresco cai pesadamente sobre o lixo, sinto o teu abraço quente que me desfaz em pequenos nadas, como se me pousasses a mão sobre a testa febril.

E sou amorosamente fundido com o lixo e com a terra, e regresso a casa.

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