sexta-feira, junho 06, 2008

De mão em mão

Tenras nove horas da noite, passo apressado, dirijo-me para o cinema. Encostado a uma parede está uma figura, parte da paisagem decerto, que parece querer algo.
Páro.
Tento voltar a ouvir na minha cabeça o que acabou de ser dito. Era algo como precisar de ajuda, ajudar a chegar à estrada para chamar um táxi.
Vejo-o. Apoiado em duas muletas, uma perna das calças traçada em frente da outra parecendo não albergar nada lá dentro e uma das mãos com um aspecto fraco e doentio, o homem deve ter uns cinquenta anos.
Esforço-me por compreender, concluo que o pobre velho quer chegar à estrada de alcatrão para poder, aí, chamar um táxi. Um táxi? Pelo cheiro não parece nada ter dinheiro para isso... Digo que não me importo nada de o ajudar.
Avançamos muito devagar, os transeuntes vão olhando, passo a passo. Como as crianças, nem sempre põe o pé a direito e isso faz com que o nosso percurso seja oscilante, como se deixássemos um rasto de serpente.
Chegamos à beira do passeio e tento perceber o que ele quer. Ajuda para ficar no alcatrão encostado a um dos carros? Está bem.
Passa um táxi e faço sinal, mas ia ocupado. Passam muitos carros, mas nenhum táxi. É uma zona movimentada, decerto passará um táxi rapidamente. Pergunto-lhe: -Fica bem aqui?
Espero mais um pouco, o homem já nem repara que estou ali - penso ou quero pensar. Despeço-me e vou-me embora, de peito apertado. É como se houvesse ali uma grande questão essencial qualquer e eu não tivesse percebido qual era.
Bem mais à frente vejo um táxi. Penso em mandá-lo parar e dar-lhe uns euros para ir apanhar o desgraçado. Depois sinto-me ridículo. Penso que o homem já deve estar no táxi, a essa hora, a caminho de uma casa onde um qualquer jantar e reduzido conforto o esperará.
Cinema.
Cinema.
Cinema.
Volto para o carro. Ao passar pelo sítio onde vira o homem, vejo um monte de cartão no chão. Olho com mais atenção e estremeço ao ver um par de muletas a sair do cartão. Refugiado dentro do cartão está o homem a dormir.
Os táxis não pararam? Seria apenas um delírio? Um desejo de que fosse verdade? Ou um pedido de ajuda que eu não compreendi? Alguém o há-de ter ajudado. Aquele cartão não estava ali antes. De mão em mão, sobrevivendo graças à boa-vontade de alguns desconhecidos, o homem vai atravessando os séculos.

1 comentário:

Anónimo disse...

O texto do mendigo deixa-nos a pensar no tema da carência. A maior parte das pessoas tornaram-se insensíveis. Ao mesmo tempo é o paradoxo total, simultaneamente ele diz e não nos diz respeito algum... Visto de outra perspectiva, o mendigo precisa dessa identidade e tem a crença de que o mundo lhe deve algo. Prosta-se num estado de absorção, à espera do próximo que lhe dê qualquer coisita a sorver. Mesmo que receba, o estado de alienação é tal que muitas vezes já nem se apercebe do gesto de quem dá. O buraco do vazio aumenta à medida que pinguinhas de dádiva gotejam mais profundo, perfurando as vísceras.

Experimenta dar trabalho a alguns, estarão melhor na rua. Torna-se uma psicose oral de mendigância, uma perfeita loucura, das mais desumanas que podemos assistir.

Envio-te um texto extenso, mas penso que vais gostar. A quem passar por aqui, pesquise na net "Os Homens do Lixo" de Leonel Moura.

É um artista plástico que faz uma psicanálise dos espaços públicos e dos que neles já não podem habitar.

pima Constança