quinta-feira, outubro 22, 2009

L'enfer est plein de bonnes volontés ou désirs


Se, como dizia o sábio, voluntas reputatur pro facto, "a intenção tem valor de acção", isto implica que é necessário demonstrar a existência da intenção para que ela possa assumir esse valor. O problema reside precisamente nessa demonstração.

Se ex nihilo nil fit, "do nada nada surge", como poderemos demonstrar algo que nada é no universo físico? Apenas construindo uma cadeia lógica que permita entrever, em diversas acções visíveis e observadas, a acção que se preparava, id est voluntas, "demonstrando a intenção".

A construção de uma cadeia lógica de acções de um indivíduo, para extrapolar as suas intenções ou para demonstrar acções passadas desconhecidas, é sempre um exercício delicado. Para já, parte do princípio de que a realidade é racional e demonstrável quando, na realidade, até a coesão dos átomos tem uma probabilidade de ser interrompida (o que implicaria que os objectos físicos se atravessariam uns aos outros), o tempo é relativo, a nossa consciência de nós próprios é descontínua, a nossa percepção é uma sinergia de vários desequilíbrios que permitem manter uma relativa estabilidade e não fazemos a mínima ideia se não seremos apenas um sonho que alguém está a sonhar. O irracional domina.

O racional é uma lenta construção que vamos avançando, uma ponte sobre o real, que nos permite atravessá-lo com alguma relativa certeza, mas não é uma certeza.

Em suma, se a intenção é que conta, é preciso que seja bem clara!

quinta-feira, outubro 08, 2009

Melodia meio-esquecida

No fundo do copo, há sempre aquela centelha rosada que deixa um sabor amargo na boca: a amargura do fim, o desalento do pôr-do-sol. E, no dia seguinte, ainda ali permanece, luminosa e fremente, como um aviso de algo que ficou por fazer.

Para além do ruído, para além do silêncio que ele oculta, há uma imensidão de sentir onde pululam ideais e sonhos insuspeitos. Para além do céu, há todo um mundo por descobrir. Para além da presença, a imanência urde teias de destino, como quem alinhava uma baínha, como quem remenda uma costura, como quem trauteia uma melodia da infância, meio-esquecida.

Sonho-te, mais do que te vejo.

quinta-feira, abril 16, 2009

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Pesadelo


Que arrepio foi aquele
Pela noite adentro?
A tua voz arrastava-me para baixo
E não conseguia resistir
A descer até ao último nível...

Aí, a imundície das tuas práticas,
Lilith, súcubo, fluido demoníaco
Encheu-me de pavor
E os teus beijos fétidos e deliciosos
Cobriram-me a boca de escuridão.




Que arrepio foi aquele de madrugada?
Não me conseguia mexer
E uma criatura grotesca
Visitou-me na ignomínia

Íncubo, sátiro, fogo ardente
Profundezas do inominável
Fazendo-me sorrir no horror...
Não contes a ninguém
Aquilo que me fizeste.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Encontro

Estar deitado assim, sobre a relva molhada e a terra fria, é o mais profundo dos arrepios nas minhas costas nuas.

Os tons pálidos das nuvens, as cores vivas dos pinheiros ao fundo do campo, tudo me diz que esteve a chover.

Mergulhamos nessa sensação, nessa luxúria de aromas crus. Ficamos muito quietos deixando o frio invadir-nos, no mais delicioso dos abandonos.

Lentamente vou deixando de sentir o corpo, apenas fica na pele a impressão do teu calor, desenhada sobre mim.

Um clarão distante faz-nos cerrar o abraço. Quando rebenta o trovão começa a chover de novo. A chuva faz-se amante, intrometendo-se no nosso encontro. Olho para ti e choras chuva. Pousas a cabeça no meu peito e murmuras:
-Chhhhhh... Deixa-te ficar aqui.

Só o arrepio violento e as convulsões súbitas dos limites do corpo é que nos fazem romper o momento. Corremos nus pelo campo, em direcção ao carro.

Um dia destes deixamo-nos ficar...

O filho trocado

Tinha ouvido gritar a noite inteira,e, a uma certa hora profunda e perdida entre o sono e a vigília, já não saberia dizer se aqueles gritos eram de um animal ou se eram humanos.
Na manhã seguinte, vim a saber pelas mulheres da vizinhança que tinham sido fruto do desespero de uma mãe (uma tal Sara Longo) a quem, enquanto dormia, tinham roubado o filho de três meses, deixando-lhe em troca um outro.
- Roubado? E quem lho roubou?
- As “Comadres”!
- As comadres? Quais comadres?
Explicaram-me que as “Comadres” eram uns espíritos da noite, as bruxas do ar,
Atordoado e indignado, perguntei:
- Mas como? E a mãe acredita mesmo nisso?
Aquelas boas senhoras estavam ainda tão sinceramente aterrorizadas, que se ofenderam com o meu atordoamento e com a minha indignação. Desataram a berrar-me na cara, como se me quisessem agredir, que eles, os gritos, tinham vindo da casa da Longo e, meio despidas tal como estavam, tinham visto, visto com os seus próprios olhos, o menino trocado, ainda lá sob o tapete do quarto, aos pés da cama. O da Longo era branco como o leite, louro como o ouro, um menino Jesus; e este, pelo contrário, preto, preto como o fígado e feio, mais feio do que um macaco. E tinham sabido disto directamente da mesma mãe, que ainda agora arrancava os cabelos: ou seja, que tinha ouvido uma espécie de pranto enquanto dormia e tinha despertado; tinha levado um braço à cama próxima do filho e não o tinha encontrado; então, tinha saltado da cama e acendido a luz, tinha visto ali no chão, em vez do seu menino, aquele monstrengo, a quem o horror e o arrepio tinham impedido de tocar.
É de notar que o menino da Longo ainda usava fraldas. Ora um menino de fraldas, caindo durante o sono por descuido da mãe, poderia alguma vez deslizar tanto e com os pés virados para a cabeça da cama, ou seja ao contrário de como se deveria ter encontrado?
Era então claro que as “Comadres” tinham entrado na casa da Longo, naquela noite, e lhe tinham trocado o filho, capturando o menino lindo e deixando-lhe um feio por despeito.
Oh, faziam tantos despeitos destes, às pobres mamãs! Tirar as crianças dos berços e andar a pô-las em cadeiras noutros quartos; fazê-las ficar, da noite para o dia, com os pezinhos tortos ou os olhos estrábicos!
- E olha para isto! olha para isto! – gritou-me uma, pegando com raiva na menina que levava nos braços
e fazendo-lhe virar a cabeça para me mostrar na sua nuca um novelo de cabelos, de tal forma indestrinçável que, se a tentassem cortar ou desembaraçar, a criaturinha certamente morreria. – Que lhe parece que seja? É trança, trança das “Comadres”, que à noite passam o tempo assim, sobre as cabeças dos pobres filhos da mamã!


Estimando que era inútil, perante uma prova tão tangível, tentar convencer aquelas senhoras de que se tratava de uma superstição, pensei no que teria acontecido àquele menino que se arriscava a permanecer uma vítima.
Eu não tinha nenhuma dúvida de que lhe tinha acontecido qualquer coisa durante a noite, talvez fosse paralisia infantil.
Perguntei que pretendia fazer agora, aquela mãe.
Responderam-me que a tinham retido em casa à força, porque queria deixar tudo, abandonar a casa e partir em busca do filho, como uma doida.
-E aquela criaturinha que ali está?
-Nem a quer ver, nem sequer ouvir falar dela!
Uma delas, para a manter viva, tinha-lhe dado a chuchar um pouco de pão molhado, com açúcar, envolto num trapo em forma de mamilo. E asseguraram-me que, pela caridade de Deus, vencendo o asco e o horror, acabariam por tomar conta dela, um pouco uma e um pouco outra. Uma coisa que, pelo menos nos primeiros dias, não se podia esperar que a mãe fizesse.

PIRANDELLO, «Novelas por um ano - 1925 - Do nariz ao céu»