segunda-feira, dezembro 26, 2005

Noite Silenciosa.

Noite de Natal. O nevoeiro é tão espesso que nem consigo ver a estrada à minha frente. A serra de sintra acolhe-me com fantasmas nevoentos que se revelam pedras e árvores, arbustos e imaginação. De repente, no meio da chuva que cai persistente, vislumbro um grande cão preto parado junto à estrada. Só o vejo num momento, nem sei se não o imaginei também. Logo a seguir está um sapo grande e amarelo que se prepara para atravessar a estrada.

Lá em cima, junto à floresta encantada, a escuridão é imensa. Faz-me sentir em casa, com as grandes árvores que intuo na noite, o barulho da chuva à minha volta, as grandes pedras como entidades ancestrais que sempre ali tivessem estado... Faz-me sentir-me.

Num instante que se parece prolongar imensamente, há uma envolvência que me transforma.

Na descida, o nevoeiro tornou-se quase impossível, só vemos as coisas quando estamos em cima delas. Ao descer um pouco a chuva torna-se mais forte e o nevoeiro desaparece, como uma cortina que tivesse sido levantada. As cores aparecem agora claras e intensas, brilhantes. O grande sapo amarelo lá está, do outro lado da estrada. Desta vez vou ter com ele e toco-lhe, desvia-se devagar, como se não fosse nada. A dois passos dele, uma salamandra preta e amarela deixa-se estar à chuva.

No bosque a chuva cai como se quisesse dizer: aqui é Natal.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

o tempo que passa

Acordar com o sabor a maresia na boca, adormecer com sal nos cabelos, deixar dourar a pele sob o sol quente da manhã luminosa...
Olhar e o longe ser azul, inspirar o vento refrescante, brincar com a areia quente.

Acordar com o sabor das folhas caídas e adormecer a ouvir o vento que faz bater os estores, deixar os dias a diminuir enquanto passeamos pelos parques à luz dourada do entardecer...
Olhar e o longe ser névoa, ser longe-escuro.

Acordar e enrolar-se ainda mais nos cobertores, adormecer ao som da chuva que cai sem parar, sentir o frio a gelar os nós dos dedos das mãos enquanto corremos envoltos em casacos e gorros, luvas e cachecóis...
Olhar e não ver o longe, de estar tão longe.

Acordar. O cheiro inconfundível a pétalas, a flores, a encher a casa e o ar. Os pássaros que cantam como se descobrissem alguma coisa maravilhosa. Deixar a roupa quente em casa para ir passear à chuva miudinha que vai desaparecendo...
Olhar e o longe a ficar, de novo, azul-azul.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Charlotte Sometimes


Um quarto mágico que sabe romper as areias do tempo. Uma árvore cujas raízes mexem nos fios do cosmos e activam os corredores insuspeitados que separam as épocas. Duas meninas em épocas diferentes que dormem na mesma cama, nesse quarto.

E as águas empurram as areias do tempo. E as areias do tempo deslocam as meninas. E as meninas acordam cada uma na época da outra. E ninguém repara que são outras, que não são quem eram. Mas elas sabem... E à noite, quando vão dormir, voltam a acordar na sua época.

E o mesmo repete-se várias vezes. Até que começam a deixar mensagens uma à outra nos seus diários, ensinando-se a viver, cada uma, a vida da outra. Tornando-se amigas. Partilhando os seus pensamentos mais íntimos.

E um dia pára. E a menina do tempo presente vai procurar saber o que foi feito da menina do tempo passado. E descobre que morreu logo depois das últimas viagens temporais. Descobre que teve muita febre e morreu. A amiga que nunca conheceu. A sua amiga. E chora, chora muito, por alguém que morreu muito antes de ela ter nascido.

She was crying and crying for a girl who died so many years ago,
Charlotte Sometimes, so far away glass-sealed and pretty.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Fuchsia


Oh fuchshia! You leave me breathing like the drowning man

«The drowning man é um lamento pela morte de fuchsia, um símbolo, uma rapariga, uma personagem de Titus Groan por Mervyn Peake, é um lamento pela morte da inocência, pela morte do amor cego...» Robert Smith

Em Titus Groan de Mervyn Peake, fuchsia é a jovem e ingénua filha do Lord e da Lady Groan. Ela tranca-se no sótão e vive dentro da sua imaginação... Tudo o que ela quer é um cavaleiro de armadura brilhante que venha até à torre do castelo salvá-la.

Sente-se muito só e carente de atenção... Quando o Steerpike cai para dentro do sótão onde ela se refugia e finge ser um aventureiro, apaixona-se por ele. Alimentando as suas fantasias, ele torna-se seu servo e sedutor. À medida que Steerpike sobe ao poder, a paixão de fuchsia aumenta, e acaba por levá-la a um final trágico...

«... uma rapariga de cerca de quinze anos com cabelo preto longo e bastante rebelde. Desajeitada de movimentos e, em certa medida, feia de cara -- mas com que pequena mudança não se poderia subitamente tornar bonita? A sua boca grave era cheia e rica -- os seus olhos chispavam. Usava um lenço amarelo meio solto à volta do pescoço. O seu vestido largo era vermelho flamejante. Apesar da sua postura ser direita, andava com as costas tortas.» Titus Groan, M.P.

«I would have left the world all bleeding
Could I only help you love
The fleeting shapes
So many years ago
So young and beautiful and brave

Everything was true
It couldn't be a story» The Drowning Man, The Cure

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Sonho

Em sonhos as palavras escritas transformam-se se forem relidas. Quando vejo uma porta que diz "cozinha", volto a olhar e diz "jardim". Quando vejo atrás de mim uma montanha, volto a olhar e é um rio.

Habituei-me a voltar a olhar sempre, para perceber se estou a sonhar ou não. Habituei-me e, agora, o que acontece é ainda mais confuso. As palavras mantém-se, por vezes, as mesmas, mas quando as releio parecem-me diferentes... As paisagens duram umas vezes mais outras menos, mas, enquanto duram, vão-se transformando perante o meu olhar atónito. Caí para dentro do sonho.

Quando ando pela rua, de vez em quando dou saltos muito altos. Às vezes começo a voar, outras volto a cair no chão. Também isto não me parece servir para perceber se sonho ou não...

No outro dia tinha a certeza de estar acordado e, quando experimentei saltar não voei. Depois fui assistir ao enterro do meu eu futuro numa campa vazia e transformei-me numa espécie de caracol, porque tinha os joelhos magoados e andava com as minhas próprias tíbias nas mãos, tentanto voltar a encaixá-las no lugar.

Quando ando por aí, ando sempre à espera que as pessoas atravessem paredes, levantem voo, ou desatem a dançar em complicados bailados aquáticos... Mas agora já não me faz diferença. Já não me interessa distinguir. Descobri que não preciso de saber. Para mim é tudo sonho.