quinta-feira, setembro 29, 2005

És bosque, és terra...


Um olhar lançado através do ar em direcção aos teus olhos. Já nos conhecemos. Num sonho dei-te a beber de um cálice de ibisco um néctar misterioso. Depois ergueste-te (pois estávamos sentados numa clareira) e segui-te até ao coração do bosque.
Chegámos àquele ponto em que tudo parece estar em vibração, onde todo o bosque fala, todo ele se faz sentir. Dali já não nos podíamos entranhar mais. Vi-te, com assombro, a deitares o teu corpo num tronco que te começou a envolver, a cercar de ramos, a cobrir de árvore. Logo desapareceste na árvore, como se todo o teu ser tivesse sido assimilado por ela. E fiquei só no bosque.
O sol poderia brilhar, mas ali não se via nada, só árvores, só raízes, só cheiro a musgo e a húmus. Sentei-me no tronco. Deixei pousar as mãos na casca macia e fria, húmida, onde tinhas desaparecido.
O toque era bom, as mãos gostaram, os dedos começaram a brincar, a esgaravatar, a entrar pela árvore adentro. Depois, foi tudo uma vertigem. O corpo lançou-se como um chicote e agarrou-se com força ao tronco, um vórtice. A boca mergulhou e não encontrou um tronco duro e sim uma piscina de orvalho fresco, uma boca suave e vegetal, um amor-perfeito. As mãos acharam na madeira um corpo subtil. O mundo virou-se ao contrário e encontrei-te na ilha do coração da árvore, só e à minha espera. O olhar atravessou o ar a cheirar a terra molhada, como uma intenção, e mergulhei em ti.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Solidão?

Cada um está a sós com aquilo que é (Man ist allein mit was man ist. - Novalis). O que não quer dizer que não se possa sair de si. A comunicação é o milagre que permite que isto aconteça. O impossível concretizado é quando me dizes algo que tem tudo a ver comigo. Como se soubesses, como se me conhecesses por dentro. O impossível. Cada um está só, mas estamos todos sós da mesma maneira, o que faz de nós criaturas semelhantes e possibilita a comunicação.
Para mim é maravilhoso o diálogo, tão maravilhoso que não estranho minimamente os mal-entendidos, os desencontros, as discussões. Para mim essa é a regra. Quando o entendimento é total maravilho-me, nesses momentos acalenta-me a pálida visão de uma humanidade unida.
O auge da comunicação, a situação em que te entendo melhor, é, para mim, o amor. No amor, tudo se faz veículo e falas-me com a voz, sim, mas também com o olhar e com o corpo e, até, com os teus silêncios. Através do amor, nada será silenciado.
In a matter of speaking I just want to say that I could never forget the way you told me everything by saying nothing (Tuxedomoon e, agora, também Nouvelle Vague).

quarta-feira, setembro 14, 2005

A gigante



A gigante nem se via. Movia os seus esforços hercúleos e deslocava o mundo consigo. O mundo mexia-se no espaço e a gigante mais parecia o Atlas carregando-o às costas. Mas não era.
A gigante era uma formiga. Os seus esforços incomensuráveis destinavam-se a carregar consigo um objecto que a ultrapassava em dimensão cerca de 50 vezes, talvez mais.
Seria um objecto necessário, pensamos. Seria, mesmo, um objecto imprescindível. No entanto, não era, de forma alguma, nem necessário, nem imprescindível.
Tratava-se de uma pena de pombo, comprida, lustrosa, bonita. Uma pena que parecia mover-se sozinha. Uma pena que andava colada à parede. A pequena Amazona nem se via, com o seu corpinho preto agarrado à ponta da pena.
Estaria a coleccioná-las? O pombal ali perto forneceria ampla matéria para esse passatempo. Teria gostado daquela matiz particular de azuis e cinzentos? Estaria deprimida?
Ao contrário do que é costume, não se avistava nenhuma compatriota da nossa amiguinha nas redondezas. Sob o sol escaldante e ofuscante ter-se-iam refugiado no formigueiro, onde descansariam a apanhar o fresco da terra e a saborear lentamente um qualquer delicioso repasto.
Estaria perdida? Procuraria construir uma cabaninha sob a qual se pudesse abrigar? Ou, talvez, procurasse algo de inovador para a decoração do formigueiro... Já podia imaginar a cara das colegas da colónia ao verem o que trazia para animar o ambiente! Era oficial, era uma formiga decoradora de interiores, talvez a primeira de sempre.
Com o orgulho estampado no rosto, afastou-se lenta e esforçadamente carregando a sua pena de pombo ao longo do passeio.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Amores trágicos



O que é que haverá nos amores trágicos? Porque é que nos cativam tanto? Amores de perdição... Ainda me lembro da primeira vez que li o «Eurico, O Presbítero» e da sensação de fascínio horrorizado em que me deixou aquele final arrepiante... A Hermengarda enlouquecida por pensar o Eurico morto...
As histórias trágicas colam-se-nos ao corpo.
Ocasionalmente, mergulhamos em amores insanes com o único objectivo de nos deixarmos, por uns tempos, morrer de amor. Aí é bom. Saboreia-se a existência na ponta da língua, corre-se os dedos pelo fio da navalha, vive-se o tempo segundo a segundo, gota-a-gota, como se estivesse tudo suspenso. E depois, a uma palavra, um gesto, um toque da pessoa amada, o tempo acelera vertiginosamente, como um carrossel enlouquecido!
Para o Aristóteles, a Tragédia pretendia suprir a necessidade humana de sofrimento (pathos). Para atingir este objectivo havia dois caminhos: provocar a compaixão (eleos) com as personagens que sofrem, ou o terror (phobos) mediante a identificação com as personagens que sofrem. No caso dos amores trágicos, se eu vejo outro sofrer eu sinto compaixão, mas se eu me revejo nesse amante em sofrimento eu sinto aquele agridoce do amor, aquela loucura, como se fosse eu o amante! Nem que seja apenas enquanto seguro o livro...
Amores trágicos: eco e narciso, eurico e hermengarda, orfeu e eurídice, romeu e julieta - não há momento mais trágico em toda a ficção do que o momento em que a Julieta desperta ao lado do corpo sem vida (e ainda quente!) do seu Romeu amado, que se suicidara ao pensá-la morta...
Eco e Narciso: o amor rejeitado que leva o amante a consumir-se na dor...
Eurico e Hermengarda: o amor vencido pelos obstáculos da vida que leva os dois amantes a serem destroçados por ele...
Orfeu e Eurídice: o amor vencido pelo tempo e pelas fraquezas humanas...
Romeu e Julieta: o amor vencido pela desventura, pelo universo caótico...
Cada um escolha o seu amor trágico preferido. Os meus são o «Romeu e Julieta» em primeiro lugar, o «Eurico e Hermengarda» em segundo lugar, o «Narciso e Eco» em terceiro lugar e, por último, o «Orfeu e Eurídice».
Ainda há outro: o «Fausto e a Margarida» - mas é engano, é luxúria e medo da morte, é mergulho nas profundezas. O Fausto já é velho quando se apaixona pela Margarida, pelo que vende a alma a Mefistófeles em troca da juventude. É a morte (velhice) a desejar a vida (juventude).
Melhor que isto tudo, ainda é o amor que dá fruto, que não termina com a loucura, dissolução, morte ou perversão dos amantes!

quinta-feira, setembro 08, 2005

Morte e Vida



Há três máximas do humanismo que me tocam particularmente: memento mori («lembra-te de morrer»), aurea mediocritas («satisfaz-te com pouco»), carpe diem («aproveita o dia»).
Lembra-te de morrer. Soa estranho, não é? A ideia é não deixar constantemente coisas por resolver, pois «não sabemos a hora nem o lugar» em que vamos acabar.
Aproveita o dia. O momento que vives é irrepetível. Nunca haverá outro. Só nele é que tens a oportunidade de viver. Aproveita-o.
Satisfaz-te com pouco. Se tiveres expectativas demasiado altas nunca vais conseguir aproveitar o momento e a vida há-de-te passar ao lado. Sempre à espera daquele carro, daquela casa, da outra vida que hás-de ter, porque esta ainda não é a tua vida, a tua vida não vai ser nada assim... Sempre à espera da morte. Andar a correr é a melhor maneira de chegar depressa ao fim. E isto não é uma corrida, é um passeio. Um passeio pela vida.
Estas três ideias têm um coisa em comum: todas têm a morte como pano de fundo. A morte é o melhor contraponto: a melhor maneira de entender a vida é olhando para a morte. Se não deixamo-nos simplesmente ir. Sem a morte não há projecto.
O Heidegger dizia que só aceitando a ideia da morte é que poderemos começar a ver as coisas enquanto possibilidade real e começar a assumir a responsabilidade pela nossa passagem pelo mundo. A partir do momento em que aceitas a ideia de que não duras para sempre já não te deixas ir atrás dos outros como antes. Já escolhes o teu caminho.
Tudo o resto é ir atrás da maioria, fazer o que se faz e não o que tu queres fazer, se te demorares a pensar nisso.
A morte em si não é nada. Há um poema em sânscrito, um sutra chamado do Coração, que termina dizendo Gate, gate, paragate, parasamgate, buddhi swaha., «Foi, foi, foi completamente, foi total e completamente para a Luz. Amén.» Para mim a morte é isso: uma partida luminosa, mesmo que o seja apenas para deixar os outros cheios de esperança, para lhes dar um reconforto cósmico.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Enigma do Amor Implícito

? O desejo único tem sido apenas névoa infinita, maravilhamento,
Uma luz incandescente...
Escutando uma quimera sabemos, enfim, ver
Onde ardem nossas rosas,
Onde macias Algas unem esperanças moribundas...

As três idades