sexta-feira, outubro 28, 2005

Partida

Um céu nublado, um avião que parte, uma viagem. Nem sempre nos vamos embora quando partimos, mas há quem se leve sempre consigo.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Ovo


No encontro há uma explosão de cores, uma magia misteriosa que se faz fonte. É uma magia-fonte que se vai tornar vida, uma subtil alquimia que transforma aquilo que antes estava separado numa imensa unidade. As duas essências juntam-se e formam algo mais. O ovo é gerado.
No ovo tudo é potência, tudo é eventualidade pulsante. O ovo respira o futuro e é atraído por ele. O ovo quer ser. Ele liberta o seu funcionamento sagrado e prolonga a sua indiferenciação até ao limite. Expande-se e repete-se até chegar à vertigem da concretização, à vertigem da existência.
O ovo dorme no casulo quente da mãe. O ovo dorme numa barriga protectora, numa barriga espaçosa e aconchegante, aquática e macia. O ovo não sabe nada disto, mas é alimentado e protegido, é acalentado e desenvolve-se muito devagar.
O ovo é a esperança.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Amor feroz

Fazia-lhe impressão o crucifixo pequeno e de madeira ao pescoço. Quando o tirou sentiu-se a respirar. Sentiu também uma vertigem. Estava cansada. Deitou-se só com uma camisa velha dele. A noite quente parecia tornar o ar espesso e difícil de inspirar. Adormeceu a olhar para uma sombra que parecia estar prestes a mexer-se no tecto do quarto.

Deixou-se levar, dançando nos fluidos do sonho, cada vez mais longe.

A sombra deslizou pelas paredes e reuniu-se junto à sua cabeceira, como algo terrível. Os lençóis tapavam o seu corpo de mulher apenas até à cintura. A camisa aberta deixava entrever um seio e o pescoço nu brilhava com a luz pálida do luar, que entrava agora pela janela aberta. Parecia murmurar qualquer coisa baixinho.

A sombra ergueu-se e deu lugar à figura de um homem banhado de luz prateada. O seu
rosto estava muito sério, quase petrificado. Os lábios estavam entreabertos num esgar repugnante. Quando se debruçou sobre ela viu-se-lhe a boca de dentes longos e afiados, como a de um animal feroz. Aproximou-se dela e sentiu o cheiro perfumado do seu cabelo.

Então passou a mão de unhas compridas pela pele fina do pescoço. Em seguida, deixou pousar ali os dentes. Procurou a veia, mas não a mordeu. Deixou-se ficar ali, a acariciá-la com os caninos ferozes, a sentir o sangue a pulsar. A demorar o momento.

No meio do sono, ela mexeu-se levemente e murmurou: - Meu amor! Meu amor!

terça-feira, outubro 18, 2005

O todo



Dizem que a criatura maior da terra é um fungo. Um fungo gigante que ocupa uma área imensa. No entanto, quem lá for apenas verá aqui e ali pequenos cogumelos no chão, por entre outras plantas e árvores. O corpo desse fungo permanece oculto debaixo do solo.
Dizem que a terra é uma criatura viva. Que quando algo acontece afecta a todos. Que a humanidade não é composta por indivíduos e, sim, faz parte de um todo. Algo em que tudo se relaciona. Que um indivíduo com todas as suas pequenas particularidades, apenas se define assim por viver na comunidade em que vive. Por oposição ou complementaridade em relação a ela. Que estamos todos ligados.
Dizem que nos sentimos tão intensamente sós, tão nós-próprios, que somos capazes de coisas horríveis, que nem reconhecemos que os outros são seres como nós. Dizem que às vezes choramos às escuras.
Dizem, também, que somos capazes de acções tão imensamente inúteis e prejudiciais para nós e, no entanto, às quais damos valor por beneficiarem os outros. Dizem que há quem morra por amor. Que há laços que transcendem a razão.
Dizem que no dia em que deixar de haver bosque e árvores toda a humanidade vai estremecer. Que o sol nos dá amor. Que os rios nos limpam a alma. Que as fogueiras, à noite, cosem as almas das pessoas com linhas indestrutíveis. Que somos só um, enfim.
Dizem tudo isto, mas não o conseguem sentir.

terça-feira, outubro 11, 2005

Encontro

Reparara logo nele. Ele vinha a andar com um livro aberto à frente da cara. Parecia tão absorto no que lia que nem via para onde ia. Finalmente sentou-se numa cadeira da esplanada e continuou a ler. O cabelo caía-lhe para a cara o que o levava a mexer-lhe distraidamente, enrolando-o por vezes. Quando fazia isto, demorava-se muito tempo com os dedos enredados no cabelo, e só parava mesmo para virar a página.

O dia estava triste e enevoado, ameaçava chover mas não de imediato. A relva ficara, por isso, matizada de melancolia. Até o laguinho fluía pesaroso e sombrio.
Quando pousou o livro e levantou a cabeça, olhou-a directamente nos olhos. Ela, de tão envolvida que estava a observá-lo, nem se lembrou de desviar o olhar. Fazia faísca, aquele olhar, aquecia por dentro, sem hesitações nem falsidade, cheio de calor e sensualidade. Esboçaram um gesto em simultâneo, como se se fossem levantar, como se se tivessem reconhecido... Ah, estás aí.. Até que enfim! Procurei-te tanto e agora apareces aqui?... Mas contiveram o gesto.

Mantinham-se sentados embora o corpo manifestasse continuamente a necessidade de se levantar, de se encontrar com aquele outro ser, ali, à frente. As considerações racionais logo acalmaram os ânimos. Ele continuou a ler, embora inquieto e com dificuldade visível em voltar a entrar no livro. Ela acabou o sumo fresco que estava a beber e levantou-se. Ia ao museu.

Quando passou pela mesa dele olhou-o de novo e disse: -Vem.
Ele guardou o livro e seguiu-a em silêncio. Ao chegarem ao balcão ele aproximou-se e disse à funcionária: -Somos dois. - e foi a maneira como o disse que o fez soar tão próximo, tão familiar...

Entraram no museu e dirigiram-se os dois para a exposição de pintura. Passearam pelos corredores vendo os quadros, em silêncio; sentindo a presença quente um do outro; vendo a chuva a cair através das grandes janelas de vidro... Quando chegaram ao fim, saíram para a esplanada vazia de mesas e cadeiras molhadas onde a chuva ainda caía com força. Com uma corrida refugiaram-se numa reentrância do edifício.

Foi aí que voltaram a olhar para os olhos um do outro, todos molhados da chuva que os envolvia. Então, com a magia que por vezes atravessa o silêncio, abraçaram-se com uma ternura tão imensa que ela deixou cair uma lágrima enquanto murmurava: -Esperei tanto...

segunda-feira, outubro 10, 2005

Devaneio aquático

O torpor do frio que envolve a pele. O mar a cobrir-me. O corpo inerte junto à rebentação. Onde estou?

As ondas que rebentam e me deslocam sobre a areia. Não me mexo. O mar leva o meu corpo com as ondas. Cada vez me puxa mais para dentro. Sinto-me a renascer.

O frio na pele não afecta o interior. A boca e o nariz são invadidos pela água. Deixo-a entrar na boca para sentir o sal na língua.

Não me mexo. As ondas rebentam em mim e enrolam-me conforme passam. Vou navegando.
O balanço das águas em mim. Não me mexo.

É desta que me nascem escamas...

sexta-feira, outubro 07, 2005

Antemanhã

Uma antemanhã. Um momento sagrado em que tudo parece abrandar quase até à imobilidade total. O rio a reflectir intensamente o sol que nasce, em tons prateados que cegam. A ponte como um enorme animal, estendendo as suas patas até ao outro lado.
O rio está sujo, sob o passeio do tejo, mas acima de tudo está melancólico.
O jardim exala o cheiro das ervas aromáticas desta zona. O alecrim e o rosmaninho dominam. Vejo três pés de rosmaninho arrancados e colocados simetricamente sob a relva húmida.
Ando até ao fim da estacada das gaivotas, onde os pescadores vão pescar, como se invadissem a solidão inquietante do rio que dorme. Ainda não está lá ninguém. Pressinto gente e vejo, realmente, pescadores que se dirigem para ali. Lanço o olhar através do espaço, como um voo de gaivota, passando sobre as encostas da outra margem, dirigindo-me para o sul. O sul, onde está o sul? Depressa...
Num instante, o momento quebrou-se, os pescadores dispõem o seu equipamento e preparam-se para a pesca. Num ímpeto, atravesso o jardim a correr, recuando o rio, como se o estivesse a filmar.
Da praceta para onde me dirijo, o rio fica enquadrado ao fundo, entre o jardim e a outra margem, com a ponte de um lado e o sol em frente. Viro-me de costas e é então que a vejo. Ali, muito vermelha por fora e com um amarelo alaranjado que espreita de dentro, está uma líchia fresca na calçada. Falta-lhe um pequeno pedaço e revela as marcas de dentes muito pequenos. Imagino que tivesse sido um anjo...

quinta-feira, outubro 06, 2005

Ruas perdidas...

Ruas perdidas com dizeres em língua de boneca, traços misturados com pontos e acentos fora de sítio. Paredes antigas, cheiros estranhos, ruídos de bazar. Aqui, um muro indiscreto que deixa ver um cemitério judaico, ali, um almoadim no alto de um minarete a chamar os crentes à imponente mesquita azul, de altifalante em punho.
Um Hammas, de pedra tão antiga que mais parece Bizantino. Uma sala de cachimbos de água, onde em tapetes suaves e almofadas macias se joga o gamão e se bebe chá de maçã.
Pessoas estranhas que nos abordam na rua, com propostas extravagantes, querendo levar-nos para locais incertos.
Iogurte com pepino e alho, fresquíssimo, onde não nos cansamos de mergulhar o pão. Sumo fresco de cereja no meio da rua, numa tarde escaldante junto ao Bósforo.
Panos, chás, caviar, gente, pratas, móveis, tabaco de contrabando, licores estranhos, roupa oriental, gente diferente, olhos diferentes, caras escuras e olhos brilhantes, nichos que surgem detrás de cortinas esvoaçantes e revelam pequenas esplanadas... Um não se saber bem onde se está.
No centro, um coração pulsante, uma palpitação sensível, um chamamento imponente e inevitável: Hagia Sofia. A Igreja que é Mesquita, a Santa Sabedoria, que vê tudo isto de coração complacente e absorve tudo: os narguilés e as dançarinas do ventre, os violinistas e as danças nos restaurantes, a gente afável e perturbante que nos invade o espaço, o oriente em si, todo a entrar pela Europa adentro, ali, em Istambul.

terça-feira, outubro 04, 2005

Lar

Subir por aquela encosta sentindo, à distância, o cheiro a pão quente. Entrar na cozinha quente e ver-te, com a cara vermelha do calor, a tirar o pão do forno de lenha.

Tens um lenço na cabeça que deixa cair uns fios de cabelo negro sobre os olhos. Tens as mãos cheias de farinha e há um cheiro a alecrim no ar, da vassoura com que varreste as brasas do forno. Os olhos brilham-te. Estás suada, mas feliz.

No ar, o cheiro a pão misturado com o alecrim deixa, ainda, perceber um outro aroma, algo mais fino, mais macio... Algo que se imiscui no odor que a madeira libertou ao arder. Um perfume que se sobrepõe à profusão de cheiros, embora seja mais ténue que todos eles.

É um cheiro a serões confortáveis sentados à lareira, um cheiro de noites no alpendre com a tua cabeça a descansar no meu peito, um cheiro de proximidade... É o cheiro que povoa as nossas manhãs de intimidade... És tu.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Eclipsa-me

Eclipsa-me os sentidos, a mente, o corpo. Eclipsa-me este querer, esta ânsia de devorar o mundo! Eclipsa-me os que não falam com verdade e os que se apressam para o mal. Eclipsa-me o mar e a última onda do dia, a espraiar-se solitária numa praia deserta... Eclipsa-me essa onda, especialmente, para que não me lembre que há beleza tão imensa que desfaz toda a tristeza do mundo. Porque hoje quero sentir-me triste. Porque hoje, quero sentir-me nas profundezas aquáticas da melancolia.
Eclipsa-me, só hoje, para que me possa demorar nos pântanos e na charneca, e me possa sentir triste. Para que possa vaguear na penumbra, como uma alma perdida. Para que possa comer com os mortos e rir, sentado à sua mesa. Para que dos meus lábios não tenha de sair uma só palavra, só hoje. Só hoje, um eclipse que me oculte assim, subitamente. Um eclipse que fosse maior do que o mundo e, ao partir, deixasse a verdade a brilhar, luzidia, nos olhos das pessoas. E não houvesse mais mentira.