terça-feira, novembro 29, 2005

Murmúrios japoneses

Os meus sonhos têm uma característica estranha: são mais vívidos e claros do que a realidade.

É em sonhos que os momentos queimam. Em sonhos forjo amizades que não mais morrerão, que passam de sonho para sonho. Apaixono-me. A morte passa ao meu lado e faço de conta que não a vejo, para que não me veja a mim. Voo e respiro debaixo de água. Atravesso distâncias impossíveis com um impulso apenas. Vivo mil vidas numa só noite...

Quando os sonhos são assim, como é que distingues uma memória real de uma memória onírica?

quarta-feira, novembro 23, 2005

O Mar, o Mar...

Há dias em que o mundo abre a sua boca enorme e se prepara para nos engolir... Dias em que sentimos a pressão do céu contra o chão a esmagar-nos... Dias em que vemos a tristeza e o sofrimento que enchem o mundo e deixam tão pouco espaço para a alegria e para a beleza. Então, erguemos o nosso frágil corpo e avançamos hesitantemente através do espaço, em direcção à incerteza. Então, dirigimo-nos ao mar.

Perante a força bruta das marés violentas do Outono toda a nossa angústia emudece.

Perante aquela pujança inimitável faz-se silêncio em mim e sou purificado. Perante o cheiro cru a maresia e o frio cortante do vento marítimo, perante o ruído das explosões das vagas que se despenham contra a praia, perante o tumulto da água, consigo acreditar. Acreditar no amanhã.

Porque toda a existência se encontra ali, nas ondas quebradas que embatem umas contra as outras, na falta de nexo que, afinal, até tem a sua própria harmonia confusa, no rodopio e na água.

Água, água, água.

O Mar, o Mar...

segunda-feira, novembro 14, 2005

Orfeu e Eurídice



Quando Orfeu tocava a sua lira, toda a natureza parava para ouvir. Orfeu tocava a sua canção de amor por Eurídice.

Minha Eurídice! Gotas de orvalho saboreadas de corolas brancas puríssimas, mel resinoso de árvores cobertas de musgo, sabor a terra fresca e perfumada...

Um dia, Eurídice foi atacada por uma serpente e morreu. Orfeu ficou destroçado e as suas canções tornaram-se tão infinitamente tristes que toda a natureza chorava com ele, pela perda do seu amor. Até os Deuses se comoveram e o vieram aconselhar.

Orfeu dirigiu-se à entrada dos Infernos e tocou a sua música, o seu lamento. Aí, o próprio Hades e Perséfone se comoveram, coisa nunca antes vista e que nunca mais aconteceu, e deixaram-no levar Eurídice de volta ao mundo. A condição, porém, era que Orfeu nunca se voltasse para trás para ver o rosto de Eurídice enquanto não saísse dos Infernos. De mão dada a Eurídice, Orfeu dirigiu-se de volta ao mundo.

O seu coração batia descompassadamente de tanta ansiedade. A mão de Eurídice na sua estava fria como uma rocha. Sentia-a inerte e pesada. A inquietação perturbava-o de tal forma que andava aos tropeções. Duvidava... Não conseguia esperar! Tinha de resistir à tentação de olhar para Eurídice.

Minha Eurídice, se os Deuses me enganaram nunca mais te verei... Não levarei comigo mais do que esta sensação da tua mão gélida? Não verei, pelo menos, uma vez mais o teu rosto?

Amor que é amor arrisca tudo por um único momento de partilha.

Quando se virou, Orfeu não viu senão a floresta. A doce voz fez-se ouvir na sua cabeça, como se soasse no seu interior.

Adeus Orfeu, nunca mais me verás...

O silêncio cobria tudo.

Então Orfeu deixou sair um lamento tão profundo e de dor tão imensa como nunca se tinha ouvido e o mundo inteiro chorou...

segunda-feira, novembro 07, 2005

O sorriso

Um sorriso inesperado, um sorriso que vem romper a capa da minha distância, que me puxa, me atrai, que me traz aqui, perante ti. Um sorriso solto e quente, uma pequena intimidade, um segredo entre nós, desconhecidos subitamente tão próximos um do outro. É como se sentisse os teus lábios ao pé de mim a murmurarem pequenas palavras de confidência, como se abrisses as portas do teu jardim e me convidasses a entrar, sem me pedires nada. Um sorriso-convite segredado, um mistério luminoso, que vem pousar sobre mim como uma pétala, que me vem iluminar...
Olho-te nos olhos, desta vez a sério. Olho profundamente, para dentro de ti, e é como se caísse, como se fosse puxado por um vórtice, um sonho irresistível. E quando as nossas mãos se dão há ondas imensas a rebentar... há supernovas a explodir no universo dos nossos corações enleados... há lágrimas no céu que são vertidas sobre nós em chuva deliciosa, como se fôssemos um estame e um estilete, dançando a música do amor dentro de uma flor... Quando te vejo assim a sorrir sinto-me perto da morte.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Embrião


Na escuridão não se sente nada. Na escuridão só o calor primordial, só o sentido nos acolhe. A vida desenrola-se devagar. O cosmos como um meio aquático, um ventre protector. Do nada vai surgindo a luz. Do nada vai surgindo o som da voz da mãe. Do nada o toque aveludado do líquido envolvente. Do nada vai surgindo o mundo. A barriga-mãe como uma totalidade, um mundo em si.
Lá fora, a barriga quase passa despercebida. Lá fora a barriga sonha a mãe e todo o mundo.