segunda-feira, dezembro 26, 2005

Noite Silenciosa.

Noite de Natal. O nevoeiro é tão espesso que nem consigo ver a estrada à minha frente. A serra de sintra acolhe-me com fantasmas nevoentos que se revelam pedras e árvores, arbustos e imaginação. De repente, no meio da chuva que cai persistente, vislumbro um grande cão preto parado junto à estrada. Só o vejo num momento, nem sei se não o imaginei também. Logo a seguir está um sapo grande e amarelo que se prepara para atravessar a estrada.

Lá em cima, junto à floresta encantada, a escuridão é imensa. Faz-me sentir em casa, com as grandes árvores que intuo na noite, o barulho da chuva à minha volta, as grandes pedras como entidades ancestrais que sempre ali tivessem estado... Faz-me sentir-me.

Num instante que se parece prolongar imensamente, há uma envolvência que me transforma.

Na descida, o nevoeiro tornou-se quase impossível, só vemos as coisas quando estamos em cima delas. Ao descer um pouco a chuva torna-se mais forte e o nevoeiro desaparece, como uma cortina que tivesse sido levantada. As cores aparecem agora claras e intensas, brilhantes. O grande sapo amarelo lá está, do outro lado da estrada. Desta vez vou ter com ele e toco-lhe, desvia-se devagar, como se não fosse nada. A dois passos dele, uma salamandra preta e amarela deixa-se estar à chuva.

No bosque a chuva cai como se quisesse dizer: aqui é Natal.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

o tempo que passa

Acordar com o sabor a maresia na boca, adormecer com sal nos cabelos, deixar dourar a pele sob o sol quente da manhã luminosa...
Olhar e o longe ser azul, inspirar o vento refrescante, brincar com a areia quente.

Acordar com o sabor das folhas caídas e adormecer a ouvir o vento que faz bater os estores, deixar os dias a diminuir enquanto passeamos pelos parques à luz dourada do entardecer...
Olhar e o longe ser névoa, ser longe-escuro.

Acordar e enrolar-se ainda mais nos cobertores, adormecer ao som da chuva que cai sem parar, sentir o frio a gelar os nós dos dedos das mãos enquanto corremos envoltos em casacos e gorros, luvas e cachecóis...
Olhar e não ver o longe, de estar tão longe.

Acordar. O cheiro inconfundível a pétalas, a flores, a encher a casa e o ar. Os pássaros que cantam como se descobrissem alguma coisa maravilhosa. Deixar a roupa quente em casa para ir passear à chuva miudinha que vai desaparecendo...
Olhar e o longe a ficar, de novo, azul-azul.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Charlotte Sometimes


Um quarto mágico que sabe romper as areias do tempo. Uma árvore cujas raízes mexem nos fios do cosmos e activam os corredores insuspeitados que separam as épocas. Duas meninas em épocas diferentes que dormem na mesma cama, nesse quarto.

E as águas empurram as areias do tempo. E as areias do tempo deslocam as meninas. E as meninas acordam cada uma na época da outra. E ninguém repara que são outras, que não são quem eram. Mas elas sabem... E à noite, quando vão dormir, voltam a acordar na sua época.

E o mesmo repete-se várias vezes. Até que começam a deixar mensagens uma à outra nos seus diários, ensinando-se a viver, cada uma, a vida da outra. Tornando-se amigas. Partilhando os seus pensamentos mais íntimos.

E um dia pára. E a menina do tempo presente vai procurar saber o que foi feito da menina do tempo passado. E descobre que morreu logo depois das últimas viagens temporais. Descobre que teve muita febre e morreu. A amiga que nunca conheceu. A sua amiga. E chora, chora muito, por alguém que morreu muito antes de ela ter nascido.

She was crying and crying for a girl who died so many years ago,
Charlotte Sometimes, so far away glass-sealed and pretty.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Fuchsia


Oh fuchshia! You leave me breathing like the drowning man

«The drowning man é um lamento pela morte de fuchsia, um símbolo, uma rapariga, uma personagem de Titus Groan por Mervyn Peake, é um lamento pela morte da inocência, pela morte do amor cego...» Robert Smith

Em Titus Groan de Mervyn Peake, fuchsia é a jovem e ingénua filha do Lord e da Lady Groan. Ela tranca-se no sótão e vive dentro da sua imaginação... Tudo o que ela quer é um cavaleiro de armadura brilhante que venha até à torre do castelo salvá-la.

Sente-se muito só e carente de atenção... Quando o Steerpike cai para dentro do sótão onde ela se refugia e finge ser um aventureiro, apaixona-se por ele. Alimentando as suas fantasias, ele torna-se seu servo e sedutor. À medida que Steerpike sobe ao poder, a paixão de fuchsia aumenta, e acaba por levá-la a um final trágico...

«... uma rapariga de cerca de quinze anos com cabelo preto longo e bastante rebelde. Desajeitada de movimentos e, em certa medida, feia de cara -- mas com que pequena mudança não se poderia subitamente tornar bonita? A sua boca grave era cheia e rica -- os seus olhos chispavam. Usava um lenço amarelo meio solto à volta do pescoço. O seu vestido largo era vermelho flamejante. Apesar da sua postura ser direita, andava com as costas tortas.» Titus Groan, M.P.

«I would have left the world all bleeding
Could I only help you love
The fleeting shapes
So many years ago
So young and beautiful and brave

Everything was true
It couldn't be a story» The Drowning Man, The Cure

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Sonho

Em sonhos as palavras escritas transformam-se se forem relidas. Quando vejo uma porta que diz "cozinha", volto a olhar e diz "jardim". Quando vejo atrás de mim uma montanha, volto a olhar e é um rio.

Habituei-me a voltar a olhar sempre, para perceber se estou a sonhar ou não. Habituei-me e, agora, o que acontece é ainda mais confuso. As palavras mantém-se, por vezes, as mesmas, mas quando as releio parecem-me diferentes... As paisagens duram umas vezes mais outras menos, mas, enquanto duram, vão-se transformando perante o meu olhar atónito. Caí para dentro do sonho.

Quando ando pela rua, de vez em quando dou saltos muito altos. Às vezes começo a voar, outras volto a cair no chão. Também isto não me parece servir para perceber se sonho ou não...

No outro dia tinha a certeza de estar acordado e, quando experimentei saltar não voei. Depois fui assistir ao enterro do meu eu futuro numa campa vazia e transformei-me numa espécie de caracol, porque tinha os joelhos magoados e andava com as minhas próprias tíbias nas mãos, tentanto voltar a encaixá-las no lugar.

Quando ando por aí, ando sempre à espera que as pessoas atravessem paredes, levantem voo, ou desatem a dançar em complicados bailados aquáticos... Mas agora já não me faz diferença. Já não me interessa distinguir. Descobri que não preciso de saber. Para mim é tudo sonho.

terça-feira, novembro 29, 2005

Murmúrios japoneses

Os meus sonhos têm uma característica estranha: são mais vívidos e claros do que a realidade.

É em sonhos que os momentos queimam. Em sonhos forjo amizades que não mais morrerão, que passam de sonho para sonho. Apaixono-me. A morte passa ao meu lado e faço de conta que não a vejo, para que não me veja a mim. Voo e respiro debaixo de água. Atravesso distâncias impossíveis com um impulso apenas. Vivo mil vidas numa só noite...

Quando os sonhos são assim, como é que distingues uma memória real de uma memória onírica?

quarta-feira, novembro 23, 2005

O Mar, o Mar...

Há dias em que o mundo abre a sua boca enorme e se prepara para nos engolir... Dias em que sentimos a pressão do céu contra o chão a esmagar-nos... Dias em que vemos a tristeza e o sofrimento que enchem o mundo e deixam tão pouco espaço para a alegria e para a beleza. Então, erguemos o nosso frágil corpo e avançamos hesitantemente através do espaço, em direcção à incerteza. Então, dirigimo-nos ao mar.

Perante a força bruta das marés violentas do Outono toda a nossa angústia emudece.

Perante aquela pujança inimitável faz-se silêncio em mim e sou purificado. Perante o cheiro cru a maresia e o frio cortante do vento marítimo, perante o ruído das explosões das vagas que se despenham contra a praia, perante o tumulto da água, consigo acreditar. Acreditar no amanhã.

Porque toda a existência se encontra ali, nas ondas quebradas que embatem umas contra as outras, na falta de nexo que, afinal, até tem a sua própria harmonia confusa, no rodopio e na água.

Água, água, água.

O Mar, o Mar...

segunda-feira, novembro 14, 2005

Orfeu e Eurídice



Quando Orfeu tocava a sua lira, toda a natureza parava para ouvir. Orfeu tocava a sua canção de amor por Eurídice.

Minha Eurídice! Gotas de orvalho saboreadas de corolas brancas puríssimas, mel resinoso de árvores cobertas de musgo, sabor a terra fresca e perfumada...

Um dia, Eurídice foi atacada por uma serpente e morreu. Orfeu ficou destroçado e as suas canções tornaram-se tão infinitamente tristes que toda a natureza chorava com ele, pela perda do seu amor. Até os Deuses se comoveram e o vieram aconselhar.

Orfeu dirigiu-se à entrada dos Infernos e tocou a sua música, o seu lamento. Aí, o próprio Hades e Perséfone se comoveram, coisa nunca antes vista e que nunca mais aconteceu, e deixaram-no levar Eurídice de volta ao mundo. A condição, porém, era que Orfeu nunca se voltasse para trás para ver o rosto de Eurídice enquanto não saísse dos Infernos. De mão dada a Eurídice, Orfeu dirigiu-se de volta ao mundo.

O seu coração batia descompassadamente de tanta ansiedade. A mão de Eurídice na sua estava fria como uma rocha. Sentia-a inerte e pesada. A inquietação perturbava-o de tal forma que andava aos tropeções. Duvidava... Não conseguia esperar! Tinha de resistir à tentação de olhar para Eurídice.

Minha Eurídice, se os Deuses me enganaram nunca mais te verei... Não levarei comigo mais do que esta sensação da tua mão gélida? Não verei, pelo menos, uma vez mais o teu rosto?

Amor que é amor arrisca tudo por um único momento de partilha.

Quando se virou, Orfeu não viu senão a floresta. A doce voz fez-se ouvir na sua cabeça, como se soasse no seu interior.

Adeus Orfeu, nunca mais me verás...

O silêncio cobria tudo.

Então Orfeu deixou sair um lamento tão profundo e de dor tão imensa como nunca se tinha ouvido e o mundo inteiro chorou...

segunda-feira, novembro 07, 2005

O sorriso

Um sorriso inesperado, um sorriso que vem romper a capa da minha distância, que me puxa, me atrai, que me traz aqui, perante ti. Um sorriso solto e quente, uma pequena intimidade, um segredo entre nós, desconhecidos subitamente tão próximos um do outro. É como se sentisse os teus lábios ao pé de mim a murmurarem pequenas palavras de confidência, como se abrisses as portas do teu jardim e me convidasses a entrar, sem me pedires nada. Um sorriso-convite segredado, um mistério luminoso, que vem pousar sobre mim como uma pétala, que me vem iluminar...
Olho-te nos olhos, desta vez a sério. Olho profundamente, para dentro de ti, e é como se caísse, como se fosse puxado por um vórtice, um sonho irresistível. E quando as nossas mãos se dão há ondas imensas a rebentar... há supernovas a explodir no universo dos nossos corações enleados... há lágrimas no céu que são vertidas sobre nós em chuva deliciosa, como se fôssemos um estame e um estilete, dançando a música do amor dentro de uma flor... Quando te vejo assim a sorrir sinto-me perto da morte.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Embrião


Na escuridão não se sente nada. Na escuridão só o calor primordial, só o sentido nos acolhe. A vida desenrola-se devagar. O cosmos como um meio aquático, um ventre protector. Do nada vai surgindo a luz. Do nada vai surgindo o som da voz da mãe. Do nada o toque aveludado do líquido envolvente. Do nada vai surgindo o mundo. A barriga-mãe como uma totalidade, um mundo em si.
Lá fora, a barriga quase passa despercebida. Lá fora a barriga sonha a mãe e todo o mundo.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Partida

Um céu nublado, um avião que parte, uma viagem. Nem sempre nos vamos embora quando partimos, mas há quem se leve sempre consigo.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Ovo


No encontro há uma explosão de cores, uma magia misteriosa que se faz fonte. É uma magia-fonte que se vai tornar vida, uma subtil alquimia que transforma aquilo que antes estava separado numa imensa unidade. As duas essências juntam-se e formam algo mais. O ovo é gerado.
No ovo tudo é potência, tudo é eventualidade pulsante. O ovo respira o futuro e é atraído por ele. O ovo quer ser. Ele liberta o seu funcionamento sagrado e prolonga a sua indiferenciação até ao limite. Expande-se e repete-se até chegar à vertigem da concretização, à vertigem da existência.
O ovo dorme no casulo quente da mãe. O ovo dorme numa barriga protectora, numa barriga espaçosa e aconchegante, aquática e macia. O ovo não sabe nada disto, mas é alimentado e protegido, é acalentado e desenvolve-se muito devagar.
O ovo é a esperança.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Amor feroz

Fazia-lhe impressão o crucifixo pequeno e de madeira ao pescoço. Quando o tirou sentiu-se a respirar. Sentiu também uma vertigem. Estava cansada. Deitou-se só com uma camisa velha dele. A noite quente parecia tornar o ar espesso e difícil de inspirar. Adormeceu a olhar para uma sombra que parecia estar prestes a mexer-se no tecto do quarto.

Deixou-se levar, dançando nos fluidos do sonho, cada vez mais longe.

A sombra deslizou pelas paredes e reuniu-se junto à sua cabeceira, como algo terrível. Os lençóis tapavam o seu corpo de mulher apenas até à cintura. A camisa aberta deixava entrever um seio e o pescoço nu brilhava com a luz pálida do luar, que entrava agora pela janela aberta. Parecia murmurar qualquer coisa baixinho.

A sombra ergueu-se e deu lugar à figura de um homem banhado de luz prateada. O seu
rosto estava muito sério, quase petrificado. Os lábios estavam entreabertos num esgar repugnante. Quando se debruçou sobre ela viu-se-lhe a boca de dentes longos e afiados, como a de um animal feroz. Aproximou-se dela e sentiu o cheiro perfumado do seu cabelo.

Então passou a mão de unhas compridas pela pele fina do pescoço. Em seguida, deixou pousar ali os dentes. Procurou a veia, mas não a mordeu. Deixou-se ficar ali, a acariciá-la com os caninos ferozes, a sentir o sangue a pulsar. A demorar o momento.

No meio do sono, ela mexeu-se levemente e murmurou: - Meu amor! Meu amor!

terça-feira, outubro 18, 2005

O todo



Dizem que a criatura maior da terra é um fungo. Um fungo gigante que ocupa uma área imensa. No entanto, quem lá for apenas verá aqui e ali pequenos cogumelos no chão, por entre outras plantas e árvores. O corpo desse fungo permanece oculto debaixo do solo.
Dizem que a terra é uma criatura viva. Que quando algo acontece afecta a todos. Que a humanidade não é composta por indivíduos e, sim, faz parte de um todo. Algo em que tudo se relaciona. Que um indivíduo com todas as suas pequenas particularidades, apenas se define assim por viver na comunidade em que vive. Por oposição ou complementaridade em relação a ela. Que estamos todos ligados.
Dizem que nos sentimos tão intensamente sós, tão nós-próprios, que somos capazes de coisas horríveis, que nem reconhecemos que os outros são seres como nós. Dizem que às vezes choramos às escuras.
Dizem, também, que somos capazes de acções tão imensamente inúteis e prejudiciais para nós e, no entanto, às quais damos valor por beneficiarem os outros. Dizem que há quem morra por amor. Que há laços que transcendem a razão.
Dizem que no dia em que deixar de haver bosque e árvores toda a humanidade vai estremecer. Que o sol nos dá amor. Que os rios nos limpam a alma. Que as fogueiras, à noite, cosem as almas das pessoas com linhas indestrutíveis. Que somos só um, enfim.
Dizem tudo isto, mas não o conseguem sentir.

terça-feira, outubro 11, 2005

Encontro

Reparara logo nele. Ele vinha a andar com um livro aberto à frente da cara. Parecia tão absorto no que lia que nem via para onde ia. Finalmente sentou-se numa cadeira da esplanada e continuou a ler. O cabelo caía-lhe para a cara o que o levava a mexer-lhe distraidamente, enrolando-o por vezes. Quando fazia isto, demorava-se muito tempo com os dedos enredados no cabelo, e só parava mesmo para virar a página.

O dia estava triste e enevoado, ameaçava chover mas não de imediato. A relva ficara, por isso, matizada de melancolia. Até o laguinho fluía pesaroso e sombrio.
Quando pousou o livro e levantou a cabeça, olhou-a directamente nos olhos. Ela, de tão envolvida que estava a observá-lo, nem se lembrou de desviar o olhar. Fazia faísca, aquele olhar, aquecia por dentro, sem hesitações nem falsidade, cheio de calor e sensualidade. Esboçaram um gesto em simultâneo, como se se fossem levantar, como se se tivessem reconhecido... Ah, estás aí.. Até que enfim! Procurei-te tanto e agora apareces aqui?... Mas contiveram o gesto.

Mantinham-se sentados embora o corpo manifestasse continuamente a necessidade de se levantar, de se encontrar com aquele outro ser, ali, à frente. As considerações racionais logo acalmaram os ânimos. Ele continuou a ler, embora inquieto e com dificuldade visível em voltar a entrar no livro. Ela acabou o sumo fresco que estava a beber e levantou-se. Ia ao museu.

Quando passou pela mesa dele olhou-o de novo e disse: -Vem.
Ele guardou o livro e seguiu-a em silêncio. Ao chegarem ao balcão ele aproximou-se e disse à funcionária: -Somos dois. - e foi a maneira como o disse que o fez soar tão próximo, tão familiar...

Entraram no museu e dirigiram-se os dois para a exposição de pintura. Passearam pelos corredores vendo os quadros, em silêncio; sentindo a presença quente um do outro; vendo a chuva a cair através das grandes janelas de vidro... Quando chegaram ao fim, saíram para a esplanada vazia de mesas e cadeiras molhadas onde a chuva ainda caía com força. Com uma corrida refugiaram-se numa reentrância do edifício.

Foi aí que voltaram a olhar para os olhos um do outro, todos molhados da chuva que os envolvia. Então, com a magia que por vezes atravessa o silêncio, abraçaram-se com uma ternura tão imensa que ela deixou cair uma lágrima enquanto murmurava: -Esperei tanto...

segunda-feira, outubro 10, 2005

Devaneio aquático

O torpor do frio que envolve a pele. O mar a cobrir-me. O corpo inerte junto à rebentação. Onde estou?

As ondas que rebentam e me deslocam sobre a areia. Não me mexo. O mar leva o meu corpo com as ondas. Cada vez me puxa mais para dentro. Sinto-me a renascer.

O frio na pele não afecta o interior. A boca e o nariz são invadidos pela água. Deixo-a entrar na boca para sentir o sal na língua.

Não me mexo. As ondas rebentam em mim e enrolam-me conforme passam. Vou navegando.
O balanço das águas em mim. Não me mexo.

É desta que me nascem escamas...

sexta-feira, outubro 07, 2005

Antemanhã

Uma antemanhã. Um momento sagrado em que tudo parece abrandar quase até à imobilidade total. O rio a reflectir intensamente o sol que nasce, em tons prateados que cegam. A ponte como um enorme animal, estendendo as suas patas até ao outro lado.
O rio está sujo, sob o passeio do tejo, mas acima de tudo está melancólico.
O jardim exala o cheiro das ervas aromáticas desta zona. O alecrim e o rosmaninho dominam. Vejo três pés de rosmaninho arrancados e colocados simetricamente sob a relva húmida.
Ando até ao fim da estacada das gaivotas, onde os pescadores vão pescar, como se invadissem a solidão inquietante do rio que dorme. Ainda não está lá ninguém. Pressinto gente e vejo, realmente, pescadores que se dirigem para ali. Lanço o olhar através do espaço, como um voo de gaivota, passando sobre as encostas da outra margem, dirigindo-me para o sul. O sul, onde está o sul? Depressa...
Num instante, o momento quebrou-se, os pescadores dispõem o seu equipamento e preparam-se para a pesca. Num ímpeto, atravesso o jardim a correr, recuando o rio, como se o estivesse a filmar.
Da praceta para onde me dirijo, o rio fica enquadrado ao fundo, entre o jardim e a outra margem, com a ponte de um lado e o sol em frente. Viro-me de costas e é então que a vejo. Ali, muito vermelha por fora e com um amarelo alaranjado que espreita de dentro, está uma líchia fresca na calçada. Falta-lhe um pequeno pedaço e revela as marcas de dentes muito pequenos. Imagino que tivesse sido um anjo...

quinta-feira, outubro 06, 2005

Ruas perdidas...

Ruas perdidas com dizeres em língua de boneca, traços misturados com pontos e acentos fora de sítio. Paredes antigas, cheiros estranhos, ruídos de bazar. Aqui, um muro indiscreto que deixa ver um cemitério judaico, ali, um almoadim no alto de um minarete a chamar os crentes à imponente mesquita azul, de altifalante em punho.
Um Hammas, de pedra tão antiga que mais parece Bizantino. Uma sala de cachimbos de água, onde em tapetes suaves e almofadas macias se joga o gamão e se bebe chá de maçã.
Pessoas estranhas que nos abordam na rua, com propostas extravagantes, querendo levar-nos para locais incertos.
Iogurte com pepino e alho, fresquíssimo, onde não nos cansamos de mergulhar o pão. Sumo fresco de cereja no meio da rua, numa tarde escaldante junto ao Bósforo.
Panos, chás, caviar, gente, pratas, móveis, tabaco de contrabando, licores estranhos, roupa oriental, gente diferente, olhos diferentes, caras escuras e olhos brilhantes, nichos que surgem detrás de cortinas esvoaçantes e revelam pequenas esplanadas... Um não se saber bem onde se está.
No centro, um coração pulsante, uma palpitação sensível, um chamamento imponente e inevitável: Hagia Sofia. A Igreja que é Mesquita, a Santa Sabedoria, que vê tudo isto de coração complacente e absorve tudo: os narguilés e as dançarinas do ventre, os violinistas e as danças nos restaurantes, a gente afável e perturbante que nos invade o espaço, o oriente em si, todo a entrar pela Europa adentro, ali, em Istambul.

terça-feira, outubro 04, 2005

Lar

Subir por aquela encosta sentindo, à distância, o cheiro a pão quente. Entrar na cozinha quente e ver-te, com a cara vermelha do calor, a tirar o pão do forno de lenha.

Tens um lenço na cabeça que deixa cair uns fios de cabelo negro sobre os olhos. Tens as mãos cheias de farinha e há um cheiro a alecrim no ar, da vassoura com que varreste as brasas do forno. Os olhos brilham-te. Estás suada, mas feliz.

No ar, o cheiro a pão misturado com o alecrim deixa, ainda, perceber um outro aroma, algo mais fino, mais macio... Algo que se imiscui no odor que a madeira libertou ao arder. Um perfume que se sobrepõe à profusão de cheiros, embora seja mais ténue que todos eles.

É um cheiro a serões confortáveis sentados à lareira, um cheiro de noites no alpendre com a tua cabeça a descansar no meu peito, um cheiro de proximidade... É o cheiro que povoa as nossas manhãs de intimidade... És tu.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Eclipsa-me

Eclipsa-me os sentidos, a mente, o corpo. Eclipsa-me este querer, esta ânsia de devorar o mundo! Eclipsa-me os que não falam com verdade e os que se apressam para o mal. Eclipsa-me o mar e a última onda do dia, a espraiar-se solitária numa praia deserta... Eclipsa-me essa onda, especialmente, para que não me lembre que há beleza tão imensa que desfaz toda a tristeza do mundo. Porque hoje quero sentir-me triste. Porque hoje, quero sentir-me nas profundezas aquáticas da melancolia.
Eclipsa-me, só hoje, para que me possa demorar nos pântanos e na charneca, e me possa sentir triste. Para que possa vaguear na penumbra, como uma alma perdida. Para que possa comer com os mortos e rir, sentado à sua mesa. Para que dos meus lábios não tenha de sair uma só palavra, só hoje. Só hoje, um eclipse que me oculte assim, subitamente. Um eclipse que fosse maior do que o mundo e, ao partir, deixasse a verdade a brilhar, luzidia, nos olhos das pessoas. E não houvesse mais mentira.

quinta-feira, setembro 29, 2005

És bosque, és terra...


Um olhar lançado através do ar em direcção aos teus olhos. Já nos conhecemos. Num sonho dei-te a beber de um cálice de ibisco um néctar misterioso. Depois ergueste-te (pois estávamos sentados numa clareira) e segui-te até ao coração do bosque.
Chegámos àquele ponto em que tudo parece estar em vibração, onde todo o bosque fala, todo ele se faz sentir. Dali já não nos podíamos entranhar mais. Vi-te, com assombro, a deitares o teu corpo num tronco que te começou a envolver, a cercar de ramos, a cobrir de árvore. Logo desapareceste na árvore, como se todo o teu ser tivesse sido assimilado por ela. E fiquei só no bosque.
O sol poderia brilhar, mas ali não se via nada, só árvores, só raízes, só cheiro a musgo e a húmus. Sentei-me no tronco. Deixei pousar as mãos na casca macia e fria, húmida, onde tinhas desaparecido.
O toque era bom, as mãos gostaram, os dedos começaram a brincar, a esgaravatar, a entrar pela árvore adentro. Depois, foi tudo uma vertigem. O corpo lançou-se como um chicote e agarrou-se com força ao tronco, um vórtice. A boca mergulhou e não encontrou um tronco duro e sim uma piscina de orvalho fresco, uma boca suave e vegetal, um amor-perfeito. As mãos acharam na madeira um corpo subtil. O mundo virou-se ao contrário e encontrei-te na ilha do coração da árvore, só e à minha espera. O olhar atravessou o ar a cheirar a terra molhada, como uma intenção, e mergulhei em ti.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Solidão?

Cada um está a sós com aquilo que é (Man ist allein mit was man ist. - Novalis). O que não quer dizer que não se possa sair de si. A comunicação é o milagre que permite que isto aconteça. O impossível concretizado é quando me dizes algo que tem tudo a ver comigo. Como se soubesses, como se me conhecesses por dentro. O impossível. Cada um está só, mas estamos todos sós da mesma maneira, o que faz de nós criaturas semelhantes e possibilita a comunicação.
Para mim é maravilhoso o diálogo, tão maravilhoso que não estranho minimamente os mal-entendidos, os desencontros, as discussões. Para mim essa é a regra. Quando o entendimento é total maravilho-me, nesses momentos acalenta-me a pálida visão de uma humanidade unida.
O auge da comunicação, a situação em que te entendo melhor, é, para mim, o amor. No amor, tudo se faz veículo e falas-me com a voz, sim, mas também com o olhar e com o corpo e, até, com os teus silêncios. Através do amor, nada será silenciado.
In a matter of speaking I just want to say that I could never forget the way you told me everything by saying nothing (Tuxedomoon e, agora, também Nouvelle Vague).

quarta-feira, setembro 14, 2005

A gigante



A gigante nem se via. Movia os seus esforços hercúleos e deslocava o mundo consigo. O mundo mexia-se no espaço e a gigante mais parecia o Atlas carregando-o às costas. Mas não era.
A gigante era uma formiga. Os seus esforços incomensuráveis destinavam-se a carregar consigo um objecto que a ultrapassava em dimensão cerca de 50 vezes, talvez mais.
Seria um objecto necessário, pensamos. Seria, mesmo, um objecto imprescindível. No entanto, não era, de forma alguma, nem necessário, nem imprescindível.
Tratava-se de uma pena de pombo, comprida, lustrosa, bonita. Uma pena que parecia mover-se sozinha. Uma pena que andava colada à parede. A pequena Amazona nem se via, com o seu corpinho preto agarrado à ponta da pena.
Estaria a coleccioná-las? O pombal ali perto forneceria ampla matéria para esse passatempo. Teria gostado daquela matiz particular de azuis e cinzentos? Estaria deprimida?
Ao contrário do que é costume, não se avistava nenhuma compatriota da nossa amiguinha nas redondezas. Sob o sol escaldante e ofuscante ter-se-iam refugiado no formigueiro, onde descansariam a apanhar o fresco da terra e a saborear lentamente um qualquer delicioso repasto.
Estaria perdida? Procuraria construir uma cabaninha sob a qual se pudesse abrigar? Ou, talvez, procurasse algo de inovador para a decoração do formigueiro... Já podia imaginar a cara das colegas da colónia ao verem o que trazia para animar o ambiente! Era oficial, era uma formiga decoradora de interiores, talvez a primeira de sempre.
Com o orgulho estampado no rosto, afastou-se lenta e esforçadamente carregando a sua pena de pombo ao longo do passeio.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Amores trágicos



O que é que haverá nos amores trágicos? Porque é que nos cativam tanto? Amores de perdição... Ainda me lembro da primeira vez que li o «Eurico, O Presbítero» e da sensação de fascínio horrorizado em que me deixou aquele final arrepiante... A Hermengarda enlouquecida por pensar o Eurico morto...
As histórias trágicas colam-se-nos ao corpo.
Ocasionalmente, mergulhamos em amores insanes com o único objectivo de nos deixarmos, por uns tempos, morrer de amor. Aí é bom. Saboreia-se a existência na ponta da língua, corre-se os dedos pelo fio da navalha, vive-se o tempo segundo a segundo, gota-a-gota, como se estivesse tudo suspenso. E depois, a uma palavra, um gesto, um toque da pessoa amada, o tempo acelera vertiginosamente, como um carrossel enlouquecido!
Para o Aristóteles, a Tragédia pretendia suprir a necessidade humana de sofrimento (pathos). Para atingir este objectivo havia dois caminhos: provocar a compaixão (eleos) com as personagens que sofrem, ou o terror (phobos) mediante a identificação com as personagens que sofrem. No caso dos amores trágicos, se eu vejo outro sofrer eu sinto compaixão, mas se eu me revejo nesse amante em sofrimento eu sinto aquele agridoce do amor, aquela loucura, como se fosse eu o amante! Nem que seja apenas enquanto seguro o livro...
Amores trágicos: eco e narciso, eurico e hermengarda, orfeu e eurídice, romeu e julieta - não há momento mais trágico em toda a ficção do que o momento em que a Julieta desperta ao lado do corpo sem vida (e ainda quente!) do seu Romeu amado, que se suicidara ao pensá-la morta...
Eco e Narciso: o amor rejeitado que leva o amante a consumir-se na dor...
Eurico e Hermengarda: o amor vencido pelos obstáculos da vida que leva os dois amantes a serem destroçados por ele...
Orfeu e Eurídice: o amor vencido pelo tempo e pelas fraquezas humanas...
Romeu e Julieta: o amor vencido pela desventura, pelo universo caótico...
Cada um escolha o seu amor trágico preferido. Os meus são o «Romeu e Julieta» em primeiro lugar, o «Eurico e Hermengarda» em segundo lugar, o «Narciso e Eco» em terceiro lugar e, por último, o «Orfeu e Eurídice».
Ainda há outro: o «Fausto e a Margarida» - mas é engano, é luxúria e medo da morte, é mergulho nas profundezas. O Fausto já é velho quando se apaixona pela Margarida, pelo que vende a alma a Mefistófeles em troca da juventude. É a morte (velhice) a desejar a vida (juventude).
Melhor que isto tudo, ainda é o amor que dá fruto, que não termina com a loucura, dissolução, morte ou perversão dos amantes!

quinta-feira, setembro 08, 2005

Morte e Vida



Há três máximas do humanismo que me tocam particularmente: memento mori («lembra-te de morrer»), aurea mediocritas («satisfaz-te com pouco»), carpe diem («aproveita o dia»).
Lembra-te de morrer. Soa estranho, não é? A ideia é não deixar constantemente coisas por resolver, pois «não sabemos a hora nem o lugar» em que vamos acabar.
Aproveita o dia. O momento que vives é irrepetível. Nunca haverá outro. Só nele é que tens a oportunidade de viver. Aproveita-o.
Satisfaz-te com pouco. Se tiveres expectativas demasiado altas nunca vais conseguir aproveitar o momento e a vida há-de-te passar ao lado. Sempre à espera daquele carro, daquela casa, da outra vida que hás-de ter, porque esta ainda não é a tua vida, a tua vida não vai ser nada assim... Sempre à espera da morte. Andar a correr é a melhor maneira de chegar depressa ao fim. E isto não é uma corrida, é um passeio. Um passeio pela vida.
Estas três ideias têm um coisa em comum: todas têm a morte como pano de fundo. A morte é o melhor contraponto: a melhor maneira de entender a vida é olhando para a morte. Se não deixamo-nos simplesmente ir. Sem a morte não há projecto.
O Heidegger dizia que só aceitando a ideia da morte é que poderemos começar a ver as coisas enquanto possibilidade real e começar a assumir a responsabilidade pela nossa passagem pelo mundo. A partir do momento em que aceitas a ideia de que não duras para sempre já não te deixas ir atrás dos outros como antes. Já escolhes o teu caminho.
Tudo o resto é ir atrás da maioria, fazer o que se faz e não o que tu queres fazer, se te demorares a pensar nisso.
A morte em si não é nada. Há um poema em sânscrito, um sutra chamado do Coração, que termina dizendo Gate, gate, paragate, parasamgate, buddhi swaha., «Foi, foi, foi completamente, foi total e completamente para a Luz. Amén.» Para mim a morte é isso: uma partida luminosa, mesmo que o seja apenas para deixar os outros cheios de esperança, para lhes dar um reconforto cósmico.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Enigma do Amor Implícito

? O desejo único tem sido apenas névoa infinita, maravilhamento,
Uma luz incandescente...
Escutando uma quimera sabemos, enfim, ver
Onde ardem nossas rosas,
Onde macias Algas unem esperanças moribundas...

As três idades

terça-feira, agosto 30, 2005

À procura



À procura, à procura do sentido, de sentidos. À procura de ideias, construções que tenham algum fim, que cumpram algum objectivo.
Porquê fazer, ir, rir ou chorar, viver? Porquê?

A procura é um ir incessante, um não-estar aqui, uma fuga. Um zapping da vida, pensando que talvez haja algo de melhor atrás daquela esquina, no próximo ano, na próxima idade, na próxima vida, talvez haja algum canal melhor (pode sempre existir um canal melhor do que aquele que temos diante de nós). A procura é evitar o envolvimento, a relação. Estar à procura é tentar escapar.
Sabemos escapar muito bem. Conseguimos safar-nos de envolvimentos tão inevitáveis que quase parece um passe de mágica! Mas o tempo não pára e come os seus próprios filhos: devora-nos esgotando a nossa força, que nos permite agora escapar tão bem. A única âncora contra o tempo é as relações, o envolvimento, as raízes que o coração implanta no tecido do real.
A procura, a busca, é necessária, significa evolução! Mas não é uma procura de algo de diferente, de algo de melhor. É uma procura de sentido, sim, mas do sentido daquilo que temos diante de nós, não do sentido do que não temos e que, por isso mesmo, nos cativa tanto. O fascínio pelo exótico (sabes do que estou a falar, não sabes?) é querer fugir, fugir ao banal, ao nosso banal, que é o nosso mundo, que é o que nós somos. Só atravessando o tédio, caindo na profunda banalidade irrepetível daquilo que nos rodeia, mergulhando naquilo de que mais queremos fugir, só assim poderemos encontrar aquilo que procuramos no longe e no exótico.

Comer muito chocolate parece ser sinónimo de obter muito prazer, mas quem já sentiu um único pedaço a derreter na língua, demorando o gozo de o engolir, reprimindo a vontade de o mastigar, ficando ali, a saborear o absoluto, sabe que a inquietação do exótico, do apelativo, nos dificulta o saborear das suas infinitas nuances... Sabe que, às vezes, é preciso evitar o chocolate, como forma de reencontrar o seu verdadeiro sabor.
A atenção ao momento, ao que nos acontece agora e que vamos perder já de seguida, que vai acabar, é o que nos permite realmente estar vivos! Só agora podemos decidir a nossa vida; não há futuro, o momento presente é quando podemos decidir, é quando vivemos, tudo o resto é ilusão: o passado representa as condições que limitam o momento presente (a bagagem) e o futuro as expectativas que o limitam (a direcção), mas só ele existe, só ele é autêntico.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Enheduanna, sacerdotisa da lua

A primeira mulher que deixou alguma coisa escrita para lermos hoje,
Enheduanna, nasceu perto de 2300 anos antes de Cristo na Suméria, filha do imperador Sargão. Era sacerdotisa da deusa da lua Nanna, em Ur.

Escreveu o hino "A subida de Inanna" onde celebrava a sua relação com Inanna, deusa do amor filha de Nanna, a imensidão que sentia perante o absoluto, Enheduanna, perdida no tempo...



Majestosa rainha do eu assombrado, envolta em medo,
Que cavalga o grande eu, Inanna, Vós que aperfeiçoastes a arma a-ankara,
Que estais coberta com o seu sangue,
Que rondais tempestuosamente as grandes batalhas,
Que pisais os escudos,
Que provocais a chuva-enchente,
Grande rainha Inanna experiente em planear o ataque, Destruidora de kur,
Que disparastes do Vosso braço a flecha para longe,
Que firmastes o Vosso braço sobre as montanhas,
Como um leão Vós rugistes no céu e na terra, despedaçastes a carne das pessoas,
Como um grande touro selvagem anseais a batalha contra as terras inimigas,
Como um leão assombroso aniquilastes com o Vosso veneno os hostis e desobedientes.

Minha rainha, quando Vos tornais imensa como o céu, Donzela Inanna,
Quando Vos tornais tão vasta quanto a terra,
Quando Vos ergueis como o Rei Utu, abrindo bem os braços,
Quando estais no céu, envolta em assombroso medo,
Quando na terra estais envolta em luz brilhante e fixa,
Quando viajando sobre as montanhas avançais como uma rede azul de lápis lazuli,
Quando banhais as terras frutuosas, as terras puras,
Quando gerais as terras brilhantes, as terras puras,
Quando Vos sentais como um verdadeiro amo, como um bom amo,
Quando nas suas batalhas Vós ergueis bem alto as suas cabeças como uma arma devastadora,
Então as pessoas de cabelo negro rompem em cânticos,
Todas as terras murmuram docemente o seu cântico ilulamma,
Rainha das batalhas, Grande Filha da Lua, Donzela Inanna, quero-Vos louvar como Vos é devido.


Inanna

segunda-feira, agosto 22, 2005

Lua vermelha



Noite pesada. Cansaço. Uma presença qualquer que me chama lá fora. Uma palpitação no ar. Um chamamento...
Vejo uma grande lua vermelha que se ergue, como um prenúncio de fatalidade.
Será hoje? Será hoje a guerra? O fim? Será agora a transformação? Vem aí?? Devo-me preparar? E o futuro é desconhecido? E vamos morrer todos?
O sopro tranquilo da brisa nocturna vem-me acariciar o rosto e diz-me para sossegar. Tudo ainda é possível. Anda. Vá. Respira fundo. Mais uma vez. Tudo ainda está por cumprir.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Luz



A proximidade do prazer é assemelhada à morte da mesma maneira que a proximidade da morte se aproxima do prazer. Parece estranho? Será?

O prazer é um receber em crescendo. É um mais, mais, mais! E depois, uma vertigem de esvaziamento. O momento em que se acabou de ler um livro, de comer um chocolate, de beijar alguém, é uma delícia, pois o sabor ainda paira em nós. De seguida, há um lento retornar ao mundo, uma quebra no maravilhamento, uma pequena morte.

A morte é o fim da possibilidade de usufruir de tudo aquilo que conhecemos. As pessoas que tiveram experiências de quase-morte voltam todas com as mesmas histórias: luz ao fim do túnel, sensação de conforto e familiaridade, alguns até excitação sexual. Faz sentido que o corpo, sentindo a iminência do seu fim, resolva gastar todos os seus cartuchos e produzir a melhor sensação possível, uma espécie de one for the road em versão de neurotransmissores. Por isso se conta dos enforcados que morrem com erecção.

Isto não é nada de novo. Eros e Thanatos. Prazer e Dor. Amor e Morte. Duas divindades gregas que andam sempre de mão dada. Há práticas ou distúrbios em que esta ligação se torna visível: o sadismo e o masoquismo. Prazer na Dor. Dor no Prazer.

Também há momentos mais elevados em que isto se vê... Como estar apaixonado. Estar apaixonado é querer morrer. É querer que tudo o que foi seja modificado em função do amado. É querer ser melhor, ser como o amado goste mais. É querer morrer. E renascer. É sofrer uma alteração em absoluto.

Alteração no sentido em que o que é deixa de ser e algo de inteiramente outro toma o seu lugar. Sai o menino, entra o homem. Sai o inocente, entra o culpado. Alterações.

A morte é a luz. A luz no sentido de que apenas quando a temos em consideração conseguimos atribuir valor a coisas objectivas. Apenas o reconhecimento de que um dia é possível que se torne impossível tudo o que conhecemos, que tudo acabe (obrigado Heidegger!) nos pode conduzir a uma existência real. O Heidegger chamava-lhe existência autêntica. Tudo o resto é ilusão. Construir um império... Para quê? Para quem? Connosco não levamos nada. Talvez nada mesmo.

Só quando sentimos o fio da navalha a correr sobre os lábios, o sabor confuso ao sangue que ainda não corre, só aí, à beira do precipício conseguimos ver o que mais importa.

Não é o mesmo para todos. Cada um tem a sua fórmula. Quando o meu pai morreu eu ia com ele no carro para o hospital. Ele estava ao meu lado e eu ia falando com ele. Nunca houve um momento em que as coisas me parecessem mais claras. Dedicamos tanto tempo ao que não é essencial e tão pouco, tão pouco mesmo, àquilo pelo qual morreríamos... Mais tarde, no leito de morte, diremos, se eu tivesse feito, se eu tivesse, ao menos, tido a coragem de viver, de olhar para aquilo que estava mesmo ao meu lado... Quando falo em verdade é nisto que falo.

Pétalas



As flores são os órgãos genitais das plantas. Dito isto, as pregas das pétalas sobre os estames e os estiletes têm o mesmo objectivo que as pregas de pele sobre os sexos humanos: esconder e proteger o que se encontra lá dentro... Ocultar um segredo.
Quem olhar para uma flor de pétalas garridas, expondo a sua intimidade sem pudor ao sol do meio-dia, não lhe leve a mal! Que com um arco-íris de pétalas perfumadas no sexo, também nós andaríamos assim: exibindo as nossas intimidades.

terça-feira, agosto 02, 2005

Terra


Quando era miúdo achava que se ficasse tempo suficiente dentro de água o meu corpo se desfazeria e eu ficaria feito em gotas de água... Sempre me achei água.
Porém, quando a terra fica molhada de chuvas mansas, quando tudo se faz húmus, quando passa nas minhas mãos o toque rude da terra fresca e húmida, e o cheiro intenso e familiar cobre tudo, sinto-me vegetal... Nessa altura, sinto-me árvore e só quero meter as minhas raízes pela terra adentro, à procura de mais água. Ficar quieto, deixar-me estar na terra a sentir a chuva que cai...
Quando alguém morria no caminho as pessoas levavam-no para os cemitérios, por piedade... Quem me dera a mim morrer ao ar livre, a sentir a terra sob o meu corpo e a chuva a cair sobre mim! Quem me dera aí ficar e aí ser coberto de terra, terra sobre o meu corpo nu, terra na minha boca... terra!
Daí me ergueria feito árvore, uma árvore grande para que pudesse sentir tudo, um grande carvalho ou uma faia, um castanheiro de aroma resinoso, um pinheiro...

sábado, julho 30, 2005

O Dafnis e a Cloé


O Dafnis e a Cloé tinham algo em comum: tinham sido encontrados os dois por pastores quando eram pequenos. Como viviam no mesmo sítio, passavam o tempo todo juntos, brincando e descobrindo o mundo. Para Dafnis a resposta era sempre Cloé.
Desde muito cedo que sentiam um afecto muito forte um pelo outro. Um dia, com o despertar da adolescência, começaram a sentir um calor muito intenso sempre que estavam perto um do outro. Deitavam-se nus ao lado um do outro, sem saber o que fazer, abraçados ternamente.
-Vou morrer! - dizia Dafnis... A Cloé sentia o mesmo, sentia-se a afogar no seu desejo por Dafnis, um fogo intenso que lhe fazia impressão na barriga e lhe deixava a pele toda arrepiada. Dafnis sentia o calor entre as pernas, fazendo-lhe inchar o sexo e levando-o, por vezes, a perder o nexo.
E deixavam-se estar assim, abraçados no meio do campo, com as ovelhas a pastarem à sua volta, sentindo a palpitação voluptuosa da vida e não sabendo o que se passava. Não compreendendo, apenas aceitando...
A vertigem do desejo confundia-se com a proximidade da morte, como se fosse uma eminência de revelação.

quinta-feira, julho 28, 2005

O mar


Sempre quis ser um peixe. Um peixe que nadasse perto da superfície, que era para poder ver o sol, mas um peixe-peixe. Um peixe escorregadio e luzidio, rápido a nadar e esperto a desviar-se das redes que por aí andam... Mas, acima de tudo, perder-me no mar, senti-lo à minha volta, dentro de mim, a atravessar-me, a ser todo o meu universo. E não pensar em nada. Não pensar: isto é bom? Sentir, sentir o mar, o sabor do sal na minha língua de peixe que não conheceria outro sabor, o toque fluido da água nas minhas escamas que não conheceriam o toque da brisa seca... Conhecer as correntes e os outros peixes. Dançar por entre as algas. E morrer lá fora, em terra, com a chuva a cair sobre o meu corpo-peixe, para lhe sentir o sabor pelo menos uma vez na vida.

sexta-feira, julho 22, 2005

Flores


Os pequenos caprichos egoístas dos que mandam no mundo imiscuiram-se, lentamente, em tudo. Hoje em dia, os princípios que regulam a actividade económica são de tal forma que teriam sido considerados demoníacos noutros tempos.
Sapatos desportivos, roupas, computadores, tudo o que compramos participa num jogo que nos transcende e que faz muita gente infeliz. No entanto, há muitas coisas que não podemos deixar de comprar... e quem as faz sabe disso.
Muita gente, demasiada, se afastou demasiado da natureza e, assim, da humanidade.
Flores para lembrar aquilo que há de bom...

Roupa Suja


São as casas dos trabalhadores das fábricas de roupa da Indonésia. Mas não são fábricas de roupa qualquer... São as fábricas de roupa das marcas mais conhecidas: Gap, Basics, Ralph Lauren, etc.
A pergunta que temos todos de fazer não é: será que uso roupa feita por pessoas em condições desumanas. O mais trágico é que a pergunta correcta é: será que uso roupa de alguma marca que não seja feita por pessoas em condições desumanas?
As grandes marcas todas participam desta forma degradante de produção. Até o Decathlon que eu achava que estava completamente de fora dessas porcarias... Vejam a lista no site da Campanha de Roupa Limpa.

Nike - Just Do It


Um casal de trabalhadores de uma fábrica de material desportivo da Indonésia. A fotografia foi tirada na sua casa, quando esperavam o seu primeiro filho. O homem disse ao fotógrafo: "O meu salário dá para comermos, mas não podemos comprar nem um rádio nem mais nada. Como pai, sinto-me muito preocupado com o meu bebé. Poupamos dinheiro quando podemos. A coisa que mais me assusta é a nossa situação financeira depois do bebé nascer, porque os salários que a Nike para são demasiado baixos..."

Nike - Just Do It

quarta-feira, julho 20, 2005

Abnegação

O filme sobre o caos e o terror na Birmânia chamado Rangoon tem um momento em que o tempo parece suspenso...

É uma travessia a pé de um rio. As pessoas têm de atravessar porque estão a ser atacadas pelo exército. O rio é demasiado largo e a corrente muito forte. As pessoas mantêm-se juntas com os tiros e as bombas a cairem ao seu lado. Os mais fracos são arrastados pela água.

Há uma mulher que leva um bebé pequenino ao colo. Está demasiado fraca... E enquanto é arrastada pela corrente, o corpo todo submerso, a cabeça debaixo de água... O tempo pára. Ela ergue o bebé sobre as águas, em desespero, para que alguém o possa salvar. Se o abandonasse poder-se-ia ter agarrado a alguma coisa. Se o deixasse cair à água poderia respirar mais uma vez. Se o largasse morreria de outra maneira muito pior que o afogamento.

Ela morre a saber que o seu bebé viverá mais um pouco, foi salvo por uma mão amiga.

Esta história é tocante por parecer tão real. Esta história é todo um filme. As pessoas têm destas coisas que nos surpreendem, de facto. As pessoas têm coisas boas.

terça-feira, julho 19, 2005

Danae e Zeus


Havia um rei chamado Acrisius que tinha uma filha, Danae. Um dia o oráculo profetizou que Danae iria dar à luz um rapaz que haveria de matar o rei.
O rei, assustado, mandou trancá-la numa torre de bronze, sozinha.
Danae vivia muito solitária e ansiava por amor. Zeus, ao olhar para ela na sua solidão, enamorou-se e resolveu amá-la. Só que Danae estava bem protegida dentro da sua torre. Então, Zeus transformou-se e choveu ouro sobre Danae, fecundando-a.
O rei acabou, realmente, por ser morto pela criança assim gerada. Danae significa «aquela que foi queimada» e Zeus significa «luz do dia». A conclusão é que o amor queima e é tão inevitável como o destino.

segunda-feira, julho 18, 2005

Eco e Narciso


Havia uma ninfa chamada Eco que tinha uma voz maravilhosa e adorava falar. Assim ficou incumbida de conversar com Hera, a mulher de Zeus, enquanto este se deleitava com as outras ninfas. Mas Hera percebeu e condenou a Eco a apenas poder repetir o que os outros lhe dissessem. Eco ficou muito triste.
Havia um humano chamado Narciso que era tão formoso que fazia com que todas as mulheres se apaixonassem por ele, mas não amava ninguém. Eco, quando o viu, apaixonou-se perdidamente por ele.
Um dia, ganhou coragem e foi ter com ele, mostrando-lhe o seu amor por gestos e olhares. Narciso, que se aborrecia por tanta gente o amar, rejeitou o seu amor.
A Eco ficou com o coração despedaçado e deixou-se definhar, sem comer nem beber, até que dela só restou a voz, presa pelo feitiço de Hera à obrigação de repetir a voz dos outros.
Narciso desagradou aos deuses por não saber amar e foi castigado. Ao contemplar o seu reflexo na água, apaixonou-se por si próprio e nunca mais conseguiu sair dali. Acabou por se transformar numa flor que conhecemos como o narciso.

quinta-feira, julho 14, 2005

Lilith



Na Bíblia há duas passagens referentes à criação da mulher. A primeira diz que Deus criou o homem e a mulher à sua semelhança, a segunda fala da história da costela de Adão, usada para gerar a Eva. A conclusão da análise judaica foi que se tratava de duas mulheres primordiais: a Lilith e a Eva. Porquê duas?

A Eva é a mulher submissa que segue o Adão e lhe obedece como Deus manda.

Lilith é acusada de coisas hediondas. Diz-se dela que recusava prender o cabelo e gostava de se sentar no sexo de Adão, descontrolada. Foi expulsa do paraíso e banida para os infernos onde copula com demónios e gera legiões. É ela a tentadora.

É a mulher que assume a sua sexualidade, a mulher que sabe o que quer. Ela assusta o homem, como no mito da vagina dentada: faz o homem temer que a sua virilidade não seja suficiente e, por isso, tem de ser banida.

Nos tempos antigos, acreditava-se que a terra tinha duas luas. Uma que nunca se via e a outra, visível. A lua negra é a Lilith.

Em homenagem ao feminino houve quem dissesse pela boca da Lilith: «Porque eu sou a virgem e a mãe, a puta e a mártir.»

O feminino é tudo isto: a pureza infantil da menina, a loucura insensata da sexualidade da mulher, a doçura incomparável da mãe e a determinação férrea da visionária. Homenagem lhe seja prestada!

Lilith

quarta-feira, julho 13, 2005

Sheela-na-Gig


É a Sheela-das-Árvores, a mulher livre e sem vergonha. A mulher que não foi quebrada pelas limitações impostas pelos homens, que pode mostrar o seu sexo sem ter que ter medo. É a força do feminino...

Sheela-na-Gig

terça-feira, julho 05, 2005

Amor...

Dizem que a nossa visão do amor tem as suas origens no amor cavaleiresco da Idade Média. O amor cavaleiresco deriva da zona do sul de França que é uma zona de inspiração Cátara.
Os Cátaros, por sua vez, apoiavam-se na visão da Gnose ou Gnosticismo que defendia que o universo não tinha sido criado por Deus mas sim por um criador incapaz, o Demiurgo, que tinha criado o mundo e, assim, tirado o homem do seio divino. Deste modo, o mundo era mau, era o que afastava o homem de Deus e o único caminho para Deus era contrariar o mundo.
Os Gnósticos viam o mundo como se ele fosse a terra do Diabo. Entretinham-se em rituais bizarros de desprezo da natureza humana ou de excesso para a ridicularizar: tanto as orgias desenfreadas em que chegavam a simular a missa de uma forma, digamos, muito pouco católica; como o afastamento do mundo.
Isto veio a associar-se ao que diziam o São Paulo, primeiro, e o Santo Agostinho, mais tarde: que o amor físico entre o homem e a mulher deve ser regulado e apenas concretizado tendo em vista a procriação.
Assim, chegou-se ao ideal do amor puro e semi-utópico, de divinização do amado e, lado a lado como este ideal, da carne impura e ridícula, que só serve para desprezar e conspurca a pureza dos sentimentos humanos... Que pena que não sejamos como os árabes que são capazes de frases que a nós nos chocam por serem tão estranhas: «E é aí, entre as tuas pernas, Alá seja louvado, que se encontra o paraíso!».
Nós somos a carne. Nós somos o espírito. Nós amamo-nos. Nós fornicamos. Nós vivemos. Nós comemos. Tudo é o mesmo. Tudo é união: entre os amantes, entre o ser e o mundo. Comer é unir-se com o mundo. Fornicar é unir-se com o ser amado. Se as palavras nos soam rudes, não serão os nossos ouvidos que as tornam ásperas?
Que a verdade brilhe e veremos as coisas livres de preconceitos.

sexta-feira, julho 01, 2005

Transformação

Há qualquer coisa de violento, há uma intensidade reprimida nas expressões dos que vão placidamente, de manhã, trabalhar... É uma coisa animal, uma coisa coisa que se derrama dos seus olhos e lhes crispa os músculos e os faz ter comportamentos incompreensíveis e turbulentos e caóticos e belos. Belos por serem como uma afirmação de que estamos aqui, agora, de que queremos mais do que isto, de que somos outros que não estes...
E eu, no meu universo cinzento, observo e sou observado, vejo a dor e sinto a dor, respiro a alegria visceral da revolta alheia, exalo, eu próprio, esse mesmo grito e sou uno com todos eles.
Como um só corpo caminhamos na mesma direcção, em nome dos mesmos princípios, num consenso a que chamamos o nosso mundo. Mas eu quero mais. Também há consenso na revolta. Porque não podemos caminhar juntos noutra direcção?
É preciso força para subjugar o outro, mas é preciso mais força para se submeter ao jugo, para resistir à agressão, para não ser destruído. E é uma força inteiramente diferente, mais essencial, mais desesperada... Os fracos são perigosos, são capazes de mobilizar mais força do que aquela usada para os enfraquecer. Os fracos são mais fortes...
Caminho sem hesitar, sonhando com a transformação.

sábado, junho 18, 2005

Como pode ser possível?

Quando olhas à volta vês casa, gente, estradas... nada mais. Como pode ser possível? Há uma imensa vibração nisso tudo, há uma imensa vibração em tudo! Uma crepitação que nos parece ouvir melhor quando o sol está no horizonte. Há uma dupla dimensão em tudo, porque me desdobro sempre sobre mim...

Sou o participante e o observador. Sou o juiz e o julgado. Expando-me através das coisas, muito para além da minha concha, e percebo que tudo isto que eu conheço está em mim. É em mim que tudo acontece. Quando dois desconhecidos discutem na rua, é sobre mim que se lança esse momento. Se pensar em mim sem considerar o mundo inteiro, deixo de fora quase tudo o que interessa de facto em mim. E quando contemplo tudo e o considero como parte de mim, como uma envolvência interior, é em mim que tudo encontra o seu sentido e se completa.

As coisas completam-se umas nas outras através de mim e, para mim, obtêm um sentido claro. As coisas obtêm uma imanência, um significado urgente que me diz qualquer coisa, constantemente, que se aplica a tudo.

As coisas têm sentidos que englobam toda a existência. Não vês?

segunda-feira, junho 13, 2005

mar

estar aqui é andar às voltas

estar vivo é um desconforto, é uma inquietude

estar vivo é procurar

há um maravilhamento que nos toma inteiros
e nos faz sentir que há alguma coisa a perseguir
alguma verdade superior que poderemos atingir
alguma coisa de importante a fazer

há quem lhe chame muitas coisas
é um chamamento das profundezas
é um vórtice que nos puxa

estar vivo é ser arrastado

é por isso que eu gosto do mar
pelo menos ele é aquilo que parece ser
não nos promete manhãs encantadas
nem bálsamos refrescantes

todo o mar é abismo
todo o mar é encantamento

o mar é a verdade, a introspecção e a graça

quinta-feira, junho 09, 2005

o comedor de palavras

o comedor de palavras tinha muita fome
comia indiscriminadamente verbos, nomes e mesmo adjectivos
e estava muito barrigudo

quando o vieram buscar
já ele estava morto

a sua pele adquirira um tom transparente
e em toda a sua extensão podia-se ler
as palavras que tinha devorado

pegaram nele e puseram-no numa praça pública
para dar testemunho da verdade

nós permanecemos nas palavras

segunda-feira, junho 06, 2005

Song of Childhood

«When the child was a child It walked with its arms swinging, wanted the brook to be a river, the river to be a torrent, and this puddle to be the sea.
When the child was a child, it didn’t know that it was a child, everything was soulful, and all souls were one.
When the child was a child, it had no opinion about anything, had no habits, it often sat cross-legged, took off running, had a cowlick in its hair, and made no faces when photographed.
When the child was a child, It was the time for these questions: Why am I me, and why not you? Why am I here, and why not there? When did time begin, and where does space end? Is life under the sun not just a dream? Is what I see and hear and smell not just an illusion of a world before the world? Given the facts of evil and people. does evil really exist? How can it be that I, who I am, didn’t exist before I came to be, and that, someday, I, who I am, will no longer be who I am?
When the child was a child, It choked on spinach, on peas, on rice pudding, and on steamed cauliflower, and eats all of those now, and not just because it has to.
When the child was a child, it awoke once in a strange bed, and now does so again and again. Many people, then, seemed beautiful, and now only a few do, by sheer luck.
It had visualized a clear image of Paradise, and now can at most guess, could not conceive of nothingness, and shudders today at the thought.
When the child was a child, It played with enthusiasm, and, now, has just as much excitement as then, but only when it concerns its work.
When the child was a child, It was enough for it to eat an apple, … bread, And so it is even now.
When the child was a child, Berries filled its hand as only berries do, and do even now, Fresh walnuts made its tongue raw, and do even now, it had, on every mountaintop, the longing for a higher mountain yet, and in every city, the longing for an even greater city, and that is still so, It reached for cherries in topmost branches of trees with an elation it still has today, has a shyness in front of strangers, and has that even now. It awaited the first snow, And waits that way even now.
When the child was a child, It threw a stick like a lance against a tree, And it quivers there still today. »

(by Peter Handke)

terça-feira, maio 31, 2005

É, então, assim?

Havia, numa aldeia, um grande mestre que vivia em contemplação. Um dia uma rapariga engravidou e, sob a pressão dos seus pais para revelar o nome do seu amante, acusou o mestre. O pai da rapariga esperou que a criança nascesse e foi a casa do mestre. Disse-lhe: - Como é possível!!! Tu que nos inspiravas a todos! Toma! Fica com ele...
O mestre limitou-se a dizer: - É, então, assim?
Ele acolheu a criança e iniciou a sua educação. Passado uns tempos a rapariga, não aguentando mais, revelou aos seus pais que não passava tudo de uma mentira inventada para proteger o seu amante, um rapaz da aldeia.
O pai dela foi ter com o mestre e pediu-lhe mil desculpas. Pegou na criança e disse:
- Vou levá-la comigo.
- É, então, assim? - limitou-se a dizer o mestre.

sábado, maio 21, 2005

inesperado

O inesperado oculto por detrás das nossas projecções de sentido, pequeninas e mesquinhas, surge grandioso e eloquente, cobrindo-nos de vergonha perante a sua inegável verdade. A realidade é tão real, a vida transborda de sentido que nos ultrapassa e, por isso, transcende qualquer ficção. A boa ficção é a que mais se aproxima da riqueza inesperada da vida. Fixá-la já é diminuí-la, pois ela prospera na ambiguidade e na indecisão.

sexta-feira, maio 20, 2005

O pianista

Foi encontrado um homem numa praia. Estava encharcado e não falava. Ninguém sabia o seu nome. Foi levado para um hospital. Ele continuava a não falar. Para tentarem perceber quem ele era, deram-lhe papel e um lápis. O homem desenhou um grande piano, em detalhe, a fazer sombra.
His sketch of a grand piano
Resolveram levá-lo à capela do hospital onde estava um piano. Ele sentou-se e começou a tocar. Os que ouviram dizem que foi um concerto de várias horas, sem pausas, impressionante. Ninguém sabe ainda quem ele é.

Mesmo quando tudo o resto desaparece, a música continua a ouvir-se. De profundis clamo ad te Domine, «das profundezas chamo por ti Senhor». A música é a linguagem universal.

Piano man

quinta-feira, maio 19, 2005

Últimas palavras de gente famosa

O ano passado saiu um livro que continha as últimas palavras de várias pessoas famosas. Estive a ver devagarinho e era estranho. Os que mais me tocaram foram estes três.
O primeiro, não me lembro de quem era, disse "Já me sinto muito melhor!", e morreu.
O segundo, era o Pancho Villa, disse: "Não me deixes morrer assim, diz-lhes que eu disse alguma coisa!" e morreu.
O último era o Goethe. À medida que a morte se aproximava ouviram-no a dizer: "Luz! Luz! Mais LUZ!" e morreu.
O primeiro ficou-me porque me fez pensar que, de facto, não sabemos nunca a hora, nem o dia. Há uma parábola da Bíblia que diz «Vigiai e orai, que não sabeis a hora nem o dia!» e acho que é mesmo isso. Pode ser já, pode ser daqui a muito tempo. Não nos podemos dar ao luxo de viver mentiras ou perder tempo com coisas que não nos interessam. Por isso é que dá cabo de mim ver as pessoas na cidade, com as suas caras cinzentas, todas a marcar passo e a fazer o que não querem fazer...
O segundo fez-me sorrir da nossa patetice que nos faz dar tanta importância a coisas tão ridículas! A nossa impressão de que somos muito importantes. A nossa recusa do abismo. Eu não digo que aceitar o abismo seja tarefa fácil! Digo que é preciso pelo menos olhar na direcção dele e procurar ver o que lá está e se é, ou não, abismo.
O último maravilha-me. Gostava de dizer algo do género. Luz ou água a reflectir luz. Água a reflectir luz e a cair sem parar, como chuva no verão... Morrer assim é evaporar. Morrer assim é voltar para o coração cósmico de onde viemos.

ausência

Lá no cimo da montanha há um tesouro
para quem souber não o ir procurar...

sábado, maio 14, 2005

haiku

As folhas caídas
morrem num tapete
de húmus vivo.

***

A Primavera volta.
As flores caídas
regressam às árvores.

***

A tempestade pára.
A aranha começa
uma teia nova.

***

O sol no horizonte.
Chega a hora
de uma nova luz.

avós-ontem

Os avós como flores delicadas de pétalas valiosíssimas,
avós-testemunho e avós-memória, histórias vivas de outras eras,
sabor a hortelã e cheiro a lareira, evocação altíssima,
iminência de absoluto.

Lembrança de tardes sem fim, da cabeça nos regaços,
do gesto carinhoso, avós, lembranças das casas e dos quartos.

Os quartos dos avós estão cheios de coisas desconhecidas
e as suas casas são braços abertos para nos acolher
para nos apertar junto ao seu peito e fazer rir de alegria.

sexta-feira, maio 13, 2005

o despertar

Wir sind dem Aufwachen nah, wenn wir träumen dass wir träumen...
(Estamos perto do despertar quando sonhamos que sonhamos...)
Novalis

sexta-feira, maio 06, 2005

melancolia

as vozes vêm do oculto que há em mim.

as vozes ecoam em mim, vindas do interior...

eu sou a membrana fina de um fogo primitivo que desconheço, em mim.

anoeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee